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Barba, cabelo bigode: O ofício dos barbeiros

Data: Quarta-feira, 19/07/2017 12:37
Fonte: Patrimônio Cultural

No ano de 2011 a Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Fundação Municipal de Cultura e do Centro de Referência Audiovisual, abriu edital de seleção (concurso 004/2011) de projetos de documentário de curta-metragem digital: Ofícios em Belo Horizonte. Segundo o edital, os projetos apresentados deveriam apresentar “pertinência do(s) objeto(s) elencado(s) em relação ao conceito de Patrimônio Imaterial”:

Patrimônio Cultural Imaterial são as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. O Patrimônio Imaterial é transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. (IPHAN/ UNESCO)

Neste sentido, fui convidado a compor uma equipe cujo objetivo foi elaborar um projeto visando abordar o Ofício dos Barbeiros na Cidade de Belo Horizonte.  Após o projeto ter sido aprovado foi dado inicio a fase de pesquisa e construção de sugestões de roteiros para o filme. O documentário de 10 minutos, Barba Cabelo Bigode, sinaliza não somente a complexidade do tema proposto, mas também como o processo de produção, desde a criação do projeto, sua aprovação e execução revelam possibilidades de pesquisa inovadoras e poderosas para o campo do Patrimônio Cultural.

O intuito deste artigo é de apresentar um pouco da pesquisa que deu fundamento para a criação do documentário.

Os referenciais teóricos utilizados para este trabalho são importantes autores que encampam o cenário contemporâneo das pesquisas acadêmicas que debatem os conceitos relacionados à História, Memória, Identidade, Cultura, Patrimônio Imaterial, Oralidade, dentre outros assuntos relacionados. Sendo assim, mediante ao caráter interdisciplinar da equipe (jornalistas e historiador), os esforços foram de conciliar interpretações e conceitos que dessem sustentação ao argumento do filme.

Portanto, como fio condutor das entrevistas que foram feitas durante a realização de Barba Cabelo Bigode, foi considerada a metodologia de produção de fontes orais, como apresentada por Neves (2006), Becker (1999) e Prins (1992).  Neves (2006) introduz uma tipologia das entrevistas visando à metodologia qualitativa para a História Oral: o grupo focal, a observação participante, a etnografia, as histórias de vida, as entrevistas temáticas dentre outras. Foram adotadas entrevistas temáticas semiestruturadas como metodologia de abordagem aos entrevistados buscando direcionar o questionário para os problemas formulados a partir do objeto de pesquisa. Procurou-se evidenciar por meio de comparações, em que medida as intencionalidades dos entrevistados em suas falas corroboram ou contradizem os demais. Como destaca Neves (2006), as entrevistas temáticas pressupõem a analise de desdobramentos e vínculos entre múltiplos indivíduos envolvidos no processo abordado pelo tema. Foi dessa forma que se buscou entrecruzar as falas de entrevistados de diferentes esferas sociais participantes no processo analisado.

O Ofício dos Barbeiros

O exercício do ofício do barbeiro remonta a Antiguidade Clássica, os usos, as funções e as atribuições do termo passaram por diversas transformações ao longo da História. Inicialmente, o barbeiro – ou o cirurgião-barbeiro – acumulava um espectro de funções mais amplo do que na contemporaneidade:

[…] faziam barbas, raspavam, cortavam e aparavam cabelos e unhas; também faziam benzeduras, curativos, extrações de cravos, espinhas e furúnculos, vendiam raízes que serviam como espécies de remédios e, ainda, realizavam operações cirúrgicas. Além de sangrar, sarjar, aplicar bichas, ventosas e sanguessugas. (SILVA, s/d. s/n).

Ser barbeiro na antiguidade era uma profissão de prestigio social que garantia status e independência financeira para quem a exercia. Ao longo dos séculos a profissão passou por diversas transformações, sobretudo com o advento das ciências médicas e a institucionalização da medicina que procurava sancionar o direito dos barbeiros de atuar como cirurgiões, dentistas e de prescreverem medicamentos e ervas.  Já na América portuguesa, data do século XVI o exercício da profissão com o fato marcante que a partir do dezoito foi recorrente os casos de escravos libertos que atuavam como cirurgiões-barbeiros ou barbeiros-sangradores como forma de subsistência após sua libertação.

Com o passar do tempo, o embate entre médicos e dentistas – ligados a formalização destas profissões junto às universidades – e os cirurgiões-barbeiros cuja profissão era perpetuada por meio da oralidade e da tradição, levou gradativamente à redução considerável do espectro de funções dos barbeiros. Já no século XIX, suas atribuições estavam oficialmente restritas ao corte de cabelos e barba. Desde então, esta tradicional profissão vem se adaptando e reinventando ao longo dos anos através das vicissitudes do tempo.

Uma cultura em extinção (?): tradição versus modernidade

Os reflexos das revoluções industriais, tecnológicas e do desenvolvimento do fenômeno da globalização trouxeram consequências marcantes para o Ofício dos Barbeiros. A lógica do capitalismo industrial; a produção massiva de bens de consumo não duráveis; o fetiche com o “novo”; as novas tecnologias; os ideais de progresso; os estímulos do marketing e da propaganda, etc., são, dentre outros fatores, que podem ser percebidos como aqueles que contribuem para a perda de referenciais históricos, acarretando a redução ‘espaço-temporal’ na relação entre presente e passado na sociedade contemporânea. Conforme as categorias propostas por Reinhart Koselleck (2006), ocorre uma diminuição no campo de experiência dos indivíduos e concomitantemente também reduz seu horizonte de expectativas.[1]

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. (HOBSBAWM, 1995, p.13).

Por outro lado, este mesmo fenômeno leva, conforme demonstra Castriota (2009), a um “contramovimento” em que as culturas locais reaparecem ganhando novo sentido e, muitas vezes, visibilidade no cenário mundial.

Cada vez mais os novos padrões impuseram à população a necessidade da procura por profissionais altamente especializados como médicos, dentistas, farmacêuticos, todos devidamente diplomados e regulamentados pelo Estado. Assim, essa reformulação do mundo do trabalho leva os diplomas e qualificações a adquirem maior valor do que a experiência dos barbeiros (ANTUNES, 1995). Os saberes tradicionais dos barbeiros transmitidos pela oralidade foram perdendo fôlego e espaço de atuação.

A crescente difusão da cultura do self-made-man, do individualismo, dos padrões de comportamento, higiene pessoal e do consumismo; aliados à propaganda massiva dos produtos industrializados e distribuídos amplamente no conforto e proximidade dos lares e redes de supermercados, levou cada vez mais pessoas a adquirirem o hábito de cuidarem de seus cabelos, barbas e unhas em suas próprias casas.

Houve também a difusão dos cursos profissionalizantes de cabeleireiros e outros profissionais do ramo com a propagação marcante dos salões de beleza cujas práticas, comportamentos cotidianos, tendências e métodos estão ligados aos padrões de beleza da alta moda e já não correspondem às tradições dos barbeiros.

As barbearias são espaços masculinizados que não suprem as novas exigências da contemporaneidade. Técnicas inovadoras, “milagrosas” de beleza atendem ambos os gêneros, tipos de pele, cabelo, idade etc. Os salões utilizam tecnologias, softwares, massagens estéticas e corporais e uma variedade imensa de serviços novos. Giddens (2003), aponta que as múltiplas possibilidades de escolha, a auto-reflexão e os estilos de vida são características fundamentais da modernidade para se construir nossa identidade. Os salões inovaram ao introduzir esses outros serviços que não apenas o corte de cabelo ou o fazer a barba. A procura por esses serviços se consolida para atender a grande oferta de estilos de vida disponíveis.

As barbearias já foram espaços característicos da modernidade no que diz respeito à moda que, segundo Simmel (2008), é um dos atributos da modernidade. Entretanto, a moda representa o fugidio, o efêmero e a constante renovação. O domínio do corpo, as intervenções de beleza, a obsessão pelo belo constroem demandas de serviço que as barbearias não acompanharam.

No Brasil, em 2004, os ofícios de barbeiro, cabeleireiro e manicure foram regulamentados pelo Congresso Nacional com o objetivo de fiscalizar o exercício da profissão. A regulamentação obriga os barbeiros adotarem novos padrões higiênicos e estéticos para tratar dos cabelos e barbas, readequando sua profissão às demandas da sociedade capitalista globalizada.

Um exemplo marcante da reinvenção das tradições ligadas ao ofício dos barbeiros diante das demandas sociais contemporâneas pode ser percebido na matéria intitulada: “Barbearias combinam tradição e modernidade para conquistar novos clientes” realizada pelo programa Mundo S/A da TV Globo[2]. A reportagem relata o caso de alguns empreendimentos que obtiveram grandes lucros combinando elementos estéticos que compunham o cenário das tradicionais barbearias com a oferta de serviços que englobam tanto a função tradicional de corte de barba e cabelos quanto os serviços praticados pelos grandes salões de beleza.

Considerações Finais

A complexidade da discussão que encampa o tema pode ser explicada, juntamente com diversas outras abordagens, pela dicotomia na relação entre o global e o local. De um lado, o avanço do fenômeno da globalização e do sistema capitalista nas cidades com o discurso homogeneizante de valores e modos de vida ameaça a cultura e tradição do oficio dos barbeiros. Por outro lado, o “contramovimento” de revalorização da tradição e da cultura que surge no âmbito das microrregiões do planeta e do respeito a diversidade e individualidade. Ou seja, a relação dialética entre tradição e transformação.

Sendo assim, o termo patrimônio imaterial torna-se fundamental para se pensar o ofício dos barbeiros. Este conceito passa por uma considerável ampliação de seu sentido, sobretudo diante das contribuições da reformulação do olhar acadêmico das Ciências Sociais, o qual despertou o interesse por novos objetos, sujeitos sociais e temáticas culturais antes mantidos à margem da sociedade. Desde então, foi possível elevar à categoria de patrimônio da humanidade ou da nação, elementos que – na visão mais tradicional do conceito eram descartados – como danças típicas, ritos, expressões religiosas, ofícios, além de práticas cotidianas de reprodução da cultura e da vida.

Portanto, o Ofício dos Barbeiros pode ser visualizado como uma prática tradicional que, como é demonstrado ao longo do filme, representa culturas e identidades regionais ligadas ao cotidiano da cidade, dos bairros, das comunidades locais. Os relatos dos barbeiros se enquadram no memorialismo, na reação à ideia de presente contínuo mencionada por Hobsbawm, no apego às identidades.

Uma possível recomendação de salvaguarda e do registro do Ofício dos Barbeiros na cidade de Belo Horizonte como Patrimônio Imaterial visa não o engessamento desta tradição, mas sim o respeito e reconhecimento da dinâmica própria de uma cultura ameaçada por valores externos que se impõem.

Acredita-se que tanto esta pesquisa quanto o documentário Barba Cabelo Bigode, possam servir de subsídio para argumentações futuras em prol da proteção e registro nacional do ofício junto às instituições competentes, IPHAN, IEPHA, Ministério Público, Ministério da Cultura etc. O trabalho realizado aqui se esforçou em aliar a pesquisa e metodologia acadêmica com a produção audiovisual. Atualmente, o curta-metragem está em circulação em eventos e festivais de cinema, sendo exibido também pela Rede Minas de Televisão.

Você pode assistir ao documentário na íntegra aqui: