A proposta de regularização fundiária que tramita no Congresso e desagrada vários setores da sociedade civil pode ficar pior. Após mobilização intensa de ambientalistas, artistas e até organizações internacionais, o Projeto de Lei 2.633/2020, que estava previsto para ser votado ontem, acabou não entrando na pauta da Câmara dos Deputados. Mas o adiamento não foi motivo de comemoração para os ativistas, que se manifestaram contra o texto por considerarem que institucionaliza a grilagem e estimula o desmatamento, sobretudo da Amazônia. Segundo o relator do PL, deputado Marcelo Ramos (PL-AM), “alguns setores do governo desejam um projeto mais flexível e com limites maiores”.
“Não tenho como avalizar isso, razão pela qual não aceitarei mudança no meu relatório porque tenho compromisso com a garantia de titulação, crédito e adesão a programas governamentais aos pequenos produtores e agricultores familiares, com proteção ao meio ambiente e travas à grilagem. Como amazonense, não posso me afastar disso”, explicou o parlamentar. O PL 2.633, cujo texto remete à Medida Provisória 910/2019, que perdeu validade na terça-feira passada, pode entrar na agenda de votação da Câmara na semana que vem.
Entre outras medidas, a MP, que vigorou até caducar, concedia títulos fundiários, a preços abaixo do mercado, para quem tivesse invadido terras até 2014 e permitia vistoria por sensoriamento remoto de áreas de até 15 módulos fiscais (na Amazônia, o módulo fiscal tem 100 hectares). O PL estabeleceu como marco 2008 e limitou a 6 módulos. Ainda assim, a tentativa de votar rapidamente o projeto, durante uma pandemia, provocou muita polêmica.
“Nós vamos continuar atentos e pressionando, para garantir que a sociedade brasileira seja respeitada. Os deputados eleitos pelo povo devem estar dedicados a enfrentar a triste crise sanitária que vivemos e não se valendo da menor participação e debate no rito legislativo para aprovar medidas que vão beneficiar criminosos”, declarou Luiza Lima, da campanha de Políticas Públicas do Greenpeace. “A bancada ruralista e o governo Bolsonaro seguem convictos de que, em meio à pandemia, é hora de aumentar desmatamento e grilagem”, acrescentou.
Os aliados do governo contestam as queixas contra o projeto de lei. “Não votar o projeto significa que não terá regularização. As queimadas, desmatamentos e invasões ilegais continuarão por não haver segurança jurídica e todos permanecerão na ilegalidade. Perde a sociedade mais uma vez quando não discutimos tecnicamente um assunto”, afirmou o deputado Zé Silva (Solidariedade-MG). Ele era relator da MP 910, que antecedeu o PL 2.633. O líder do governo na Câmara, deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), disse que continuaria trabalhando para aprovar o projeto.
Segundo Astrini, mais de 40 empresas estrangeiras da cadeia da soja e da carne estão dizendo que a votação do PL 2.633, e o descaso ambiental do governo Bolsonaro são ruins para a imagem do país, tanto que ameaçaram boicotar os produtos do país. “A simples entrada da MP, que ficou válida por muito tempo, incentivou o aumento da grilagem dentro de áreas indígenas e de unidades de conservação. A repercussão internacional é muito grande”, explicou Astrini. Maíra de Souza Moreira, assessora jurídica da ONG Terra de Direitos, alertou que o Legislativo não poderia votar o PL neste momento. “O ato conjunto número 2, que estabeleceu que seriam votadas prioritariamente as pautas relacionadas à crise do novo coronavírus, está sendo descumprido.”
O presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Renan Sotto Mayor, disse que o tema não pode entrar em votação a toque de caixa. “O PL representa a possibilidade de regularizar terras públicas que foram invadidas. Na visão do conselho, é uma grave violação aos Direitos Humanos possibilitar que pessoas que invadiram terras, cometendo crimes, sejam premiadas com os títulos das terras”, afirmou. Dom Roque Paloschi, arcebispo de Porto Velho e presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), levantou a opinião da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil: “A CNBB é contra a votação neste momento.”
Terra produtiva Embora tenha dito que não defenderá o PL 2.633 se o seu relatório for alterado, como pedem setores do governo, o deputado Marcelo Ramos (PL-AM) sustentou que o texto original não permite a grilagem, ao vedar a possibilidade de titulação para quem comprou a área de quem ocupou antes de 2008 e a vendeu. “Estabelece que só pode ser titulado quem está no módulo de forma mansa, pacífica e produtiva. Tem que provar que está plantando na terra”, pontuou.
Sobre o segundo argumento, de que o PL que vai estimular a devastação ambiental, Ramos destacou que as áreas tituladas têm 130% menos desmatamento. “É condição para titular provar que vai recompor a reserva legal e reflorestar o que foi desmatado. Hoje, o que estimula a queimada é o fato de os órgãos prenderem quem está na ponta, sem saber quem é o dono da terra”, justificou. O parlamentar sustentou que o PL não estimula invasão em terra indígena, quilombola ou unidade de conservação, “porque se estiverem em processo de regularização, a titulação é suspensa e bloqueada”, ao que ambientalistas rebatem alegando a demora no reconhecimento das terras a esses povos.
Para quem sustenta que o PL não pode ser votado na pandemia, o deputado também tem uma justificativa. “Quem defende (o adiamento) ignora o pequeno agricultor, para quem a legislação se destina. Eles também são vítimas da atual crise. Se ajudamos o pequeno empresário e os informais, por que não podemos ajudar o pequeno agricultor? Só com título da terra eles terão acesso ao crédito e aos programas governamentais”, completou.