Durante audiência pública para tratar da vacinação de crianças de 5 a 11 anos contra a Covid-19, todos os representantes de entidades científicas envolvidas com a saúde no país ressaltaram a importância de se vacinar esse público alvo, explicando o motivo pelo qual a doença é perigosa para o público infantil. Diferentemente do que se falava no início da pandemia, os especialistas explicaram que o potencial do vírus nas crianças não pode ser comparado com o que o coronavírus faz com os adultos, mas sim com o que outras doenças preveníveis com vacina já fizeram com as crianças.
Representante da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), Marco Aurélio Palazzi Sáfadi, explicou que esse é o ponto chave da questão. "Creio que houve algum equívoco por parte de muitos de nós de nos distrairmos com uma característica intrigante da Covid, que é a desproporcionalidade de impacto da doença nos adultos em relação às crianças. Há um impacto muito maior nos adultos do que nas crianças, isso é um dado inquestionável. Mas isso nos tirou a atenção da relevância que a doença tem para a população pediátrica", pontuou.
O pediatra mostrou um gráfico no qual comparou os casos de Covid-19 em crianças entre junho de 2020 e julho de 2021, com dados de outras doenças passíveis de prevenção de vacinas no ano que precedeu a introdução de imunização no calendário de vacinação do país. Marco Aurélio mostrou que a Covid-19 vitimou muito mais crianças do que a meningite meningocócica em 2010, a meningite pneumocócica, também em 2010, e a influenza, em 2009). "Nenhuma dessas doenças, todas passíveis de prevenção por vacina, vitimaram tantas crianças quanto a covid", afirmou.
A questão também foi ressaltada pelo médico pediatra Renato Kfouri, que participou da audiência representando a AMB (Associação Médica Brasileira). "Não é possível negligenciar, admitir 150 mortes por ano de crianças de 5 a 11 anos tendo a vacina disponível", defendeu o pediatra, completando que a soma das mortes por outras doenças prevenidas pelo calendário infantil — como a febre amarela, gripe, sarampo, rubéola, tuberculose e doença meningocócica — não supera a quantidade de crianças que perderam suas vidas pela Covid.
Representante da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), Isabella Ballalai pontuou que "crianças, diferentemente do que se entendia no princípio, não transmitem mais do que os adultos, mas tanto quanto eles se infectam e transmitem o vírus". "No cenário de transmissão alta do vírus, os benefícios da vacinação superam significativamente o risco de miocardite. Adicionalmente, se as taxas de miocardite relacionadas à vacina em crianças de 5 a 11 anos foram menores do que em adolescentes, como esperado, os resultados se mostram ainda mais favoráveis à vacinação", diz texto apresentado pela especialista.
O viés antivacina trazido por convidados bolsonaristas foi rebatido por Ballalai. Ela falou sobre os riscos de uma discussão como essa na sociedade. De acordo com ela, dependendo de como ocorre, ela pode "não só atrapalhar a adesão das famílias à vacina de Covid, mas também trazer dúvidas em relação às outras vacinas". A especialista pontuou um dado levado pelo ministério, de que na consulta pública, finalizada no último dia 2, a maioria entende que a vacinação não deve ser obrigatória. "Mas o que a gente precisa saber é o que a população precisa, e não o que a população entende, já que ela não tem subsídios científicos para saber, por exemplo, se devemos seguir o que a Anvisa recomenda", pontuou.
Também rebatendo outro argumento dos convidados antivacinas, o representante do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), Nésio Fernandes de Medeiros Júnior, frisou que os imunizantes não são experimentais, já tendo passado por três fases de estudo e tendo tido autorização das agências reguladoras dos principais países do mundo, e no Brasil, pela Anvisa. Assim como os outros especialistas, ele lembrou que um dos maiores erros na pandemia foi comparar os efeitos do coronavírus na população infantil com os efeitos na população adulta, sendo que a maneira certa é comparar os efeitos da doença aos de outras que atingem essa mesma população, como a meningite.
Medeiros, que além de secretário de Saúde do Espírito Santo é médico sanitarista, defendeu que a vacinação de crianças seja incluída no calendário vacinal e criticou que o governo tenha feito das vacinas "reféns de um debate ideológico antivacina". "Defendemos colocar a imunização de crianças no calendário. Lamentamos ver o comando da República constrangendo servidores da Anvisa e colocando as vacinas reféns de um debate ideológico antivacina e narrativas para legitimação de posições que fragilizam a confiança na ciência e nas vacinas", afirmou.
A vacinação como medida coletiva de prevenção contra a doença foi tema explorado pelo representante da Sociedade Brasileira de Infectologia, José Davi Urbaez, que reiterou a necessidade prioritária de acrescentar as crianças no PNO. "Vacina é uma das ferramentas de controle da pandemia. É coletiva. Temos que continuar na construção coerente de uma política pública de vacinação que inclua, inclusive, todas essas crianças."
Neste sentido, a cobrança de uma prescrição médica para que as crianças tenham acesso a aplicação foi um dos principais pontos criticados pelos especialistas. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, adiantou que o governo federal pretende condicionar a vacinação à apresentação do documento, além da autorização dos pais.
A infectologista Rosana Richtmann, representante da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), destacou que a exigência do exame limita o acesso e o torna ainda mais desigual. "Como você vai vacinar crianças da Amazônia precisando de prescrição? Isso é uma barreira muito grande para a implantação da vacinação", destacou. Sem essa cobrança e com disponibilidade de imunizantes, Richtmann aposta na capacidade do SUS (Sistema Único de Saúde) em garantir uma rápida campanha, permitindo um retorno mais seguro às aulas presenciais. "O Brasil é um exemplo fantástico de vacinação infantil. É um espelho para a América Latina."
Ao contrário dos representantes das sociedades médicas, os três convidados pela presidente da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados, deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), para participar da audiência pública, se manifestaram contra a vacinação. A infectologista Roberta Lacerda, o médico imunologista Roberto Zeballos e o neurocirurgião José Augusto Nasser também são conhecidos pela ala conservadora por defenderem medicamentos ineficazes contra a Covid-19, como cloroquina.
A reportagem apurou que apenas a CCJ foi convidada pelo Ministério da Saúde para indicar nomes à audiência. A participação dos três profissionais é vista como uma forma de o governo atender a base de apoio do presidente Jair Bolsonaro (PL).