Mesmo tomada por tristeza e revolta, a trabalhadora doméstica Juciara Gomes Coelho, de 49 anos, não descuida nem por um momento da proteção do filho Nicolas Gomes Ribeiro, de 9 anos. “Toda hora eu falo para ele não brincar na rua sem máscara. Ele quer sair para jogar e eu mando colocar a máscara. Agora, com a vacinação de crianças, se precisar eu até falto no trabalho para levá-lo ao posto”, diz.
Por trás da preocupação de Juciara está um dos motivos mais dolorosos vivenciados por pais, mães e responsáveis por crianças desde o início da pandemia do coronavírus. No ano passado, ela, que vive no município de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, perdeu o filho mais velho, Guilherme Henrique Gomes do Nascimento, de 12 anos, para a Covid-19. “Eu brigava muito com ele para não ficar na rua, mas o pai pegou Covid e, em uma semana, essa doença destruiu a minha criança”, diz. “Hoje, ele estaria se vacinando.”
Dados da Arpen Brasil (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais) revelam que os cartórios registraram 324 mortes de crianças com faixa etária entre 5 e 11 anos desde o início da pandemia. O levantamento mostra ainda que a parcela mais afetada pela pandemia foi a de 5 anos, com 65 mortes registradas, seguida pela faixa de 6 anos, com 47 registros. Depois, as crianças com 7 anos seguidas pelas de 11 anos — ambas com 46 falecimentos.
Os números mostram que crianças de 10 anos totalizam 43 óbitos, de 9 anos, 40 e de 8, 37 mortes. Segundo o levantamento, o ano passado registrou o maior número de mortes de crianças tendo como causa a Covid: foram 174 mortes, enquanto em 2020, 150.
“Quando falamos em crianças, sentimos uma sobrecarga maior das famílias quando vão aos cartórios registrar essas mortes”, diz Devanir Garcia, vice-presidente da Arpen Brasil. “A expectativa de vida é muito diferente. Eram pessoas com todo um futuro pela frente. Por isso, o impacto nas famílias é muito maior, as pessoas ficam bastante abaladas. É um momento de muita inquietude.”
Os dados contabilizados fazem parte do Portal da Transparência do Registro Civil, base de dados que reúne as informações de nascimentos, casamentos e óbitos registrados pelos 7.663 cartórios brasileiros — e que é administrada pela Arpen Brasil.
Guilherme morreu de Covid-19 no dia 26 de abril do ano passado. A mãe Juciara logo avisa que ainda não tem forças para falar sobre o assunto — tampouco para se lembrar. “Mas como esquecer se eu vejo na televisão toda hora? Falaram que criança não morria de Covid, colocaram isso na cabeça das pessoas e agora estamos vendo muitas morrendo e transmitindo o vírus”, diz. “Fico me perguntando: por que meu filho não voltou do hospital?”
Juciara lembra que tudo começou com uma febre no dia 12 de abril do ano passado. Naquele dia, ela percorreu hospitais e postos de saúde até conseguir atendimento para o filho. “Levamos ele no posto, deram dipirona e fomos muito mal atendidos. Saí desesperada, chorando, sem saber para onde ia. Em outro posto, mandaram a gente para casa com medicamento”, lembra.
“No dia seguinte, fomos na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) e depois para o Hospital Menino Jesus, mas não tinha vaga.” Quando Juciara finalmente conseguiu uma vaga para o filho, Guilherme foi intubado com dificuldades respiratórias. “Não passa pela nossa cabeça que um filho vai morrer.” No dia 26 de abril, ela e os familiares foram avisados sobre a morte de Guilherme. “Já tinham tirado meu filho de lá [hospital] e ele não ganhou nem uma flor.”
Guilherme cursava a 7ª série, gostava de jogar bola e brincar com jogos de celular. “Ele era muito bom no inglês”, lembra a mãe, orgulhosa. No ano passado, enquanto o país enfrentava o pico da segunda onda de Covid-19, Juciara vivia na mesma casa em que o pai de Guilherme. “Estava construindo um quartinho para ele na casa da minha irmã, mas ele não está mais aqui para ver como ficou.”
Segundo ela, mesmo com a elevada taxa de disseminação da doença em todo o país, o pai do garoto costumava frequentar bares e restaurantes sem a devida proteção contra o vírus. “Se eu tivesse para onde ir, teria ido com meus filhos. Estava com muito medo”, diz. “O pai dele tossia, espirrava, e eles dormiam juntos. Fiz questão que o pai dele fizesse o teste para Covid e deu positivo.”
Os efeitos da morte das crianças, segundo o advogado e especialista em direitos de crianças e adolescentes, Ariel de Castro Alves, são devastadores, e os traumas, eternos. “Não existe nada mais grave e traumático do que um pai ou mãe perder o filho, em qualquer circunstância, por doença, acidente ou assassinato. No caso da Covid, esses pais e mães acabam se sentindo culpados por terem contaminado os filhos, por levarem as crianças para escolas ou a locais de grande concentração de pessoas”, explica. “Ou até se culpam por não terem bons planos de saúde e não conseguirem propiciar os atendimentos de saúde mais avançados.”
Ainda que as crianças não tenham sido as principais vítimas da doença, Alves afirma que atualmente a Covid é uma das principais causas de morte por doenças de crianças no país. “Por isso, todo o possível para evitar mortes e contaminações deve ser feito: medidas de higiene, isolamento e vacinação.”
O advogado lembra ainda que a Constituição Federal e o Estatuto da Criança determinam proteção especial e prioridade absoluta para crianças. “Elas deveriam ser as primeiras a serem vacinadas e não as últimas”, diz. “O número de mortes é expressivo e as famílias atingidas acabam desestruturadas diante das mortes trágicas que poderiam ter sido evitadas.”
O vice-presidente da Arpen afirma que, nesses casos, os cartórios buscam oferecer um atendimento humanizado aos pais. “Trabalhamos isso internamente, os profissionais passam por palestras para que se tenha uma atenção especial e não haja embaraço desnecessário no momento do registro”, afirma Garcia.
Durante o período mais crítico da pandemia, os familiares tinham 60 dias para apresentar a declaração de óbito nos cartórios. “Houve uma demanda reprimida e, infelizmente, existe a possibilidade de subnotificação.” Garcia afirma que a interligação entre os hospitais e os cartórios facilitaria a identificação de fraudes nesses processos.
O Ministério da Saúde incluiu, no dia 5 de janeiro, crianças de 5 a 11 anos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19. A imunização das crianças com a vacina da Pfizer já havia sido autorizada no dia 16 de dezembro pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). “A vacinação infantil representa a proteção integral das crianças, prevista em lei. Os pais terão mais tranquilidade para que seus filhos voltem a frequentar cursos, escolas, atividades culturais, esportivas e de lazer."
A cidade de São Paulo iniciou, na segunda-feira (17), a vacinação de crianças dessa faixa etária com comorbidades, deficiência física e indígenas aldeadas contra a Covid-19. Os pais terão de apresentar atestado médico, receita ou exame que comprovem a condição dos pequenos. No Rio de Janeiro, a vacinação é dividida por gênero e terá dois dias para cada faixa etária, além de um terceiro dia para repescagem. A imunização se iniciará com as crianças de 11 anos e será finalizada com as de 5 anos.
Na pandemia, as crianças foram seriamente atingidas pela fome, suspensão das aulas nas escolas e de atividades culturais, esportivas e de lazer, por acidentes em ambientes domésticos e comunitários e pelo trabalho infantil e doméstico. “A vacinação vai reduzir esses impactos e evitar novas suspensões das aulas. Incluídas em escolas e atividades culturais, esportivas e de lazer, estarão menos expostas às situações de risco”, avalia Alves.
Apesar da demora para o início do processo de imunização dessa faixa etária e de críticas do presidente Bolsonaro ao assunto, especialistas acreditam que a campanha, assim como no caso dos adultos, tenha ampla aceitação social. “Nosso sistema único de saúde, uma política de estado e não de governo, é referência mundial. Ele chega a todos municípios e tem profissionais atuantes e qualificados, apesar de precisar de mais estrutura e orçamento”, diz Alves.
“Nesse sentido, o povo brasileiro tem tradição em vacinação e isso deve ocorrer com relação às crianças. Mas falta uma busca ativa, por meio dos agentes de saúde e das unidades básicas de saúde, daquelas pessoas e dos adolescentes que não tomaram a segunda e a dose de reforço.”
O advogado diz ainda que as escolas devem pedir aos pais, mães e responsáveis legais o comprovante de vacinação das crianças. “Se não estiverem vacinadas, os dirigentes das escolas devem alertar os familiares sobre a necessidade e obrigatoriedade da imunização. Sem a comprovação, os conselhos tutelares devem ser comunicados. Isso já ocorre com relação às demais vacinas infantis.”
A apresentação da carteira de vacinação tem sido obrigatória para a matrícula e frequência escolar. “Os conselhos tutelares, se acionados pelas escolas e creches, podem convocar os pais, mães e responsáveis para orientá-los. Ao se negarem ou não autorizarem a vacinação dos filhos, podem sofrer processos nas varas da infância e juventude, mediante representação do conselho tutelar. Ou até podem responder criminalmente por maus-tratos, já que a vacinação é considerada um cuidado indispensável”, explica.
Nos próximos dias, Juciara se planeja para vacinar o filho Nicolas. “Fico revoltada ouvindo os casos de crianças que pegaram Covid e morreram. É uma pena que as pessoas estão começando a acreditar só agora. Vou vacinar o Nicolas, é ele quem me segura.”