O match entre o distanciamento social provocado pela pandemia e a facilidade das transações virtuais na internet provocou uma explosão no número de golpes aplicados por meio de aplicativos de relacionamentos no último ano. Os crimes praticados vão desde perseguições e ameaças até latrocínios e homicídios. Todos eles, porém, contam com o mesmo facilitador: as plataformas virtuais que ajudam a promover encontros para relacionamentos.
“São instrumentos que permitem aos criminosos atrair as vítimas de uma forma mais assertiva. Se antes eles faziam as abordagens nas ruas, agora essa interação migrou para os meios virtuais”, explica Tárcio Severo, delegado de polícia titular da 3ª Delegacia Antissequestro de São Paulo.
No ano passado, a Interpol já havia emitido um alerta para 194 países membros da agência de vigilância mundial, incluindo o Brasil, para o aumento de golpes por aplicativos de relacionamentos. De lá para cá, a percepção de advogados, policiais e especialistas em segurança pública é que esse tipo de artimanha criminal só aumenta, ainda que não haja estatísticas específicas para essa modalidade de estelionato.
“Com a pandemia, as pessoas tiveram necessariamente que se manter isoladas para evitar a contaminação, e a paquera migrou para meios virtuais. Com essas abordagens, surge o perigo porque as pessoas se camuflam em outras personalidades, forjam características e imagens que não existem”, explica Raquel Kobashi Gallinati, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo.
Diante desse cenário, grupos criminosos, segundo Gallinati, encontraram novas oportunidades. “Antes, os crimes como o ‘boa noite, Cinderela’ eram praticados em bares e festas noturnas. Hoje, eles [os golpistas] preferem as plataformas virtuais para conquistar a confiança da vítima”, afirma.
A gama de golpes recorrentes por meio dos aplicativos é ampla, mas dois deles vêm chamando a atenção dos investigadores: o sequestro-relâmpago e o estelionato emocional. “Percebemos um aumento de casos. As vítimas são normalmente do sexo masculino, homens adultos com mais de 30 anos que buscam um encontro”, diz Tárcio Severo.
Segundo o delegado, os golpistas demonstram habilidade para conduzir as conversas, descobrem o poder aquisitivo das vítimas, começam a conversar e logo marcam encontro em um lugar ermo, com pouca circulação de pessoas, geralmente no período da noite. “O aplicativo é o caminho, o meio para atrair a vítima até que seja arrebatada em um sequestro-relâmpago. O veículo dos criminosos ou da própria vítima costuma ser o cativeiro”, explica.
Os sequestradores, detalha Severo, obrigam as vítimas a fazerem transferências bancárias por meio de agressões e violências. “Uma parte da quadrilha mantém a vítima refém, e outra parte sai para efetivar as transações até que a polícia tome conhecimento”, diz.
O caso recente do piloto de helicóptero Maurício Norberto Bastos, de 52 anos, que marcou um encontro por meio de aplicativo de relacionamentos e morreu após um assalto na zona oeste de São Paulo, demonstra a dinâmica desse tipo de crime. Maurício estacionou seu carro, um Mercedes-Benz avaliado em R$ 50 mil, e foi perseguido por outro veículo. Momentos depois, o piloto tentou fugir, mas morreu baleado. “Sabíamos que o veículo [dos golpistas] já havia sido usado em outro sequestro-relâmpago e prendemos o casal”, diz o titular da 3ª Delegacia Antissequestro de São Paulo.
A recomendação dos especialistas em segurança pública é que os encontros ocorram em locais públicos e que sejam feitas chamadas de vídeo para confrontar a imagem da pessoa com as fotos disponibilizadas nas redes sociais. “O que acontece normalmente é que as vítimas falam ‘bem que eu suspeitei’, mas infelizmente é muito comum que caiam nesse encantamento virtual”, explica Severo. Para que os encontros virtuais não sirvam para a criminalidade, a delegada Raquel Gallinati recomenda pesquisar o perfil dos usuários em redes sociais abertas e compartilhar fotos com amigos. “Isso é importante para que alguma pessoa mais próxima tenha conhecimento do encontro”, diz o delegado.
A explosão do número de golpes também impôs alguns entraves ao trabalho da polícia. Nos casos em que os estratagemas por aplicativos envolvem sequestros-relâmpago, os crimes podem ou não ser investigados por uma delegacia especializada. “Fazemos pesquisas diárias para saber como ocorrem os crimes e, quando identificamos um sequestro, começamos a investigar”, afirma Severo. O delegado explica que esse tipo de ação deixa rastros e, por meio deles, a polícia começa o trabalho de investigação. Entretanto, o tempo de acesso à informação é um fator crucial para a apuração.
“Hoje, existem transferências em bancos digitais, sem agências físicas, o que dificulta o nosso trabalho. Muitas vezes, as informações de instituições bancárias, locadoras de veículos e rastreadores demoram para chegar ou, quando chegam, estão incompletas”, diz Severo. “Se um banco demora um dia para nos responder, é o tempo que o crime tem para pulverizar as transações.”
Apesar da percepção que os policiais têm sobre o aumento de casos, não há números que deem a dimensão exata desse fenômeno. Isso porque, segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, os crimes que ocorrem por meio de aplicativos de relacionamentos são tipificados como estelionato. De acordo com a pasta, a Divisão Antissequestros, do Dope (Departamento de Operações Policiais Estratégicas), prendeu mais de cem pessoas envolvidas nesse tipo de crime em 2021. A CDDIBER (Divisão de Crimes Cibernéticos), do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), também atua em crimes cometidos com a utilização de meios eletrônicos.
O estelionato sexual e emocional também ganhou força com o aumento do uso de sites de relacionamentos na pandemia. Essa modalidade se caracteriza quando há abuso de confiança, conquistada por uma relação de afeto, para obter alguma vantagem ilícita. A advogada especializada em direito das mulheres Anuska de Castro Schaffer explica que, nesses casos, o estelionatário explora os sentimentos que a vítima nutre por ele por meio da manipulação ou coação para ganhar presentes, dinheiro, imóveis e outros bens. “As mulheres são as maiores vítimas”, afirma.
Os homens que aplicam esse tipo de golpe nas plataformas virtuais, segundo Schaffer, usam a técnica do love bombing. “A aproximação é muito intensa a ponto de causar uma cegueira na vítima. O golpista se utiliza dessa estratégia para atrair a vítima para o relacionamento. Com o tempo, surgem os pedidos de transferência bancária, conta conjunta, esvaziamento dos bens, entre outros”, relata. Em muitos casos, os golpistas podem se esconder atrás de perfis falsos, mas não necessariamente se preocupam em se ocultar.
Os golpes mais comuns em casos de estelionato emocional são os pedidos de transferência bancária e de empréstimos. “É uma extorsão recorrente em que a culpa da mulher é muito explorada. As vítimas relatam muita vergonha de admitir que caíram em golpes”, explica Schaffer. “As pessoas pensam que só acontece com pessoas de pouca instrução, mas existem vítimas de todos os perfis sociais e econômicos.”
Nesse sentido, a advogada destaca que é preciso prestar atenção nos primeiros indícios. “Quando a pessoa tentar promover um envolvimento rápido, com muitas promessas, é preciso desconfiar”, diz. Além disso, antes de a vítima ir à delegacia, ela também recomenda que procure ajuda profissional para evitar revitimizações ou constrangimentos por parte de operadores da polícia.
Nos casos de estelionato emocional, a delegada Raquel afirma que, gradativamente, algumas vítimas começam se encorajar para fazer a denúncia. “Ainda existe uma inibição muito grande. As mulheres tendem a se responsabilizar de forma mais gravosa quando caem nesses golpes. Isso porque existe um julgamento moral que impede a mulher de praticar sexo virtual”, diz ela. A delegada ressalta, porém, que entre os homens também há um constrangimento significativo, uma vez que essas ações explicitam sentimentos e vulnerabilidade sexual. “A vergonha é comum para homens e mulheres”, afirma.
A delegada Raquel esclarece que estelionato emocional não existe enquanto tipo penal. “O crime é o estelionato, e o meio pelo qual a vítima é enganada é a manipulação emocional”, diz. O termo surgiu, segundo ela, quando um juiz proferiu uma sentença de indenização a uma vítima de um golpe com grandes perdas materiais e com danos morais. No Brasil, o suspeito de estelionato pode ser responsabilizado criminalmente com pena de quatro a oito anos e multa.
A brasileira e fotógrafa Lívia Pietragalla, que vive na Inglaterra há oito anos, foi perseguida após um encontro por meio de aplicativos de relacionamentos. “Pensei em experimentar e tentei marcar os primeiros encontros. Conheci uma pessoa aparentemente amigável, conversamos por uma semana”, lembra ela. “Ele parecia ser super-romântico, sabia exatamente o que falar para eu me sentir valorizada.” Lívia conta que o homem perguntava coisas sobre sua rotina e dizia que tinha os mesmos gostos que ela. “Ele me contava das viagens dele e falava ‘quando nos conhecermos vou te contar mais e um dia a gente vai viajar juntos.”
No primeiro encontro, a fotógrafa afirma que ambos saíram para jantar em uma churrascaria e ao fim do encontro ele a acompanhou até as catracas da estação de trem próxima de sua casa. “Pessoalmente, fiquei um pouco incomodada, ele aparentava certa falsidade.” Na estação de trem, Lívia relata que ele tentou beijá-la. "Ele ficou bravo porque eu não quis e começou a me questionar, dizendo que pagou o jantar. Corri assustada para casa.” A fotógrafa diz que, ao chegar em casa, se deparou com diversas mensagens com xingamentos em seu celular. “Eu bloqueei o número, mas ele continuou por outros contatos.”
No dia seguinte ao encontro, Lívia afirma que ele estava na estação de trem pela qual ela costumava passar para chegar ao trabalho. “Mudei meus planos e peguei um ônibus. Além disso, mandei uma foto dele para minha prima ficar de olho se ele voltaria para a estação.” Lívia relata que chegou a ir à polícia, mas disseram a ela que recorresse novamente às autoridades caso o homem voltasse a procurá-la. “Essa perseguição durou cerca de 20 dias. Por um mês eu mudei o caminho do trabalho e, depois de três meses, mudei de endereço.”
Lívia afirma que depois dessa experiência voltou a se relacionar com pessoas já conhecidas em seus ciclos sociais. “Costumo comentar essa experiência porque tenho amigas que já passaram por isso. Uma delas se sentiu desconfortável em um encontro, pediu ajuda a uma garçonete e conseguiu sair pelos fundos do restaurante.”