A cada hora nos últimos oito anos, em média, 5.144 caixas de remédios de tarja preta usados para o controle da ansiedade saíram das farmácias e drogarias brasileiras — cerca de 123,5 mil caixas por dia.
Informações do SNGPC (Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados), da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), mostram que entre 1º de janeiro de 2014 e 31 de dezembro de 2021 o Brasil comprou 345,5 mil caixas de cinco dos ansiolíticos (benzodiazepínicos) mais vendidos: alprazolam (Frontal), bromazepam (Lexotan), clonazepam (Rivotril), diazepam (Valium) e lorazepam (Lorax).
Em 2020, primeiro ano da pandemia de Covid-19, as vendas desses cinco princípios ativos somaram 47,3 milhões, uma alta de 4,26% em relação ao ano anterior.
No ano passado, os dados da Anvisa mostram vendas de 38,1 milhões de caixas. Entretanto, os relatórios de outubro, novembro e dezembro estão incompletos, o que não permite uma análise fiel de 2021 até o momento.
Em nota, a Anvisa ressalta que "possíveis informações não escrituradas pelo farmacêutico responsável técnico não estarão contidas no banco de dados do SNGPC e não estarão disponíveis para consulta nas ferramentas dos Dados Abertos e Painéis de Consulta aos Dados de Venda ao Consumidor para os Medicamentos Sujeitos à Escrituração no SNGPC".
Os números também não levam em conta os ansiolíticos distribuídos nas farmácias do SUS.
Em janeiro de 2019, um trabalho feito pela OMS (Organização Mundial da Saúde) mostrou o Brasil como o país com maior número de pessoas ansiosas em todo o planeta: 18,6 milhões (9,3% da população).
Com a chegada da pandemia, especialistas falam sobre um aumento de pacientes com transtorno de ansiedade nos consultórios, o que explicaria a alta das vendas em 2020.
Porém, para o psiquiatra Guido Boabaid May, do corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein, é possível muitos brasileiros que usam esses fármacos não precisam deles ou estejam consumindo da forma errada.
"Via de regra, esses medicamentos devem ser de curto prazo, por 12 semanas. Às vezes a gente precisa usar por mais tempo. Mas o mais importante é que eles sejam utilizados como parte de uma estratégia de tratamento – e não é o que acontece na maioria das vezes. É como se a pessoa ficasse tomando Tylenol [paracetamol] o tempo todo para amidalite sem tomar antibiótico. Eles são para tratar sintoma, mas na grande maioria das vezes não vão atacar a causa."
Ele ressalta ainda que a maioria das pessoas que fazem uso de benzodiazepínicos não o faz com acompanhamento psiquiátrico. As receitas são médicos de outras especialidades.
Transtornos de ansiedade e síndrome do pânico, por exemplo, são tratados com o uso de antidepressivos, que atuam na regulação de neurotransmissores. Os benzodiazepínicos entram, geralmente, no início, para uso específico em situações de crise.
Quando se observa quais os medicamentos que puxaram a alta das vendas em 2020, aparecem o clonazepam e o alprazolam, justamente os que têm uma participação histórica maior no consumo.
O clonazepam, cujo nome comercial é Rivotril, representa 47% do consumo total dos cinco benzodiazepínicos.
Além de ser um medicamento barato, ele tem algumas vantagens em relação aos demais, explica o psiquiatra.
"O que a gente sempre quer é o máximo efeito ansiolítico possível e o menor efeito sedativo possível. Como o Rivotril tem uma meia vida intermediária, ele não tem um potencial tão grande de criar dependência quanto os de meia vida curta, como o lorazepam; ele não seda tanto como os de meia vida longa, como o diazepam."
O alprazolam também possui um comportamento semelhante ao do clonazepam, segundo o médico, mas com um pouco mais de potencial de causar sonolência.
O primeiro benzodiazepínico da história foi lançado no mercado em 1960. O princípio ativo era o clordiazepóxido, vendido sob o nome comercial Librium pela farmacêutica suíça Hoffmann-La Roche.
Nos anos seguintes, mais de uma dezena de medicamentos dessa classe foram desenvolvidos. Eles foram se popularizando e ocupando o espaço dos barbitúricos, que tinham pouca margem de segurança e eram responsáveis por mortes acidentais e overdoses, inclusive de famosos, como a atriz Marilyn Monroe.
Os benzodiazepínicos aumentam os efeitos do principal neurotransmissor inibidor do sistema nervoso central, o ácido gama-aminobutírico (GABA, na sigla em inglês).
O GABA é responsável por reduzir a atividade de áreas do cérebro que são responsáveis por raciocínio, memória, emoções e funções essenciais, como a respiração e a frequência cardíaca.
Quando uma pessoa está ansiosa e toma um medicamento dessa classe, ela vai experimentar uma sensação de relaxamento, que pode até causar sonolência em alguns casos e redução dos níveis de ansiedade.
"Eles são medicamentos muito eficazes para diminuir sintomas de ansiedade rapidamente. São úteis não somente para ansiedade, mas também são utilizados em tratamentos para depressão, junto com antidepressivos, são utilizados em tratamento de transtorno bipolar, epilepsia, para alguns tipos de surtos psicóticos, sempre em associação com outros remédios", explica May.
Ele acrescenta que não deve haver preconceito ou receio por quem tem indicação para uso e faz acompanhamento médico. O que preocupa, de fato, é o consumo indiscriminado.
A tarja preta na embalagem destes medicamentos já alerta sobre o risco de eles causarem dependência. No Brasil, os benzodiazepínicos somente podem ser vendidos com uma receita especial do tipo B (azul).
Todos eles causam tolerância, que é a necessidade de uma dose mais elevada para obter o mesmo efeito do início. Além disso, o médico afirma que não são todas as pessoas que podem utilizá-los.
"[Não devem fazer uso] pessoas que têm histórico de abuso de substâncias, dependentes químicos, com comportamentos compulsivos ou autodestrutivos, com transtorno de personalidade, personalidade adicta. Elas tendem ao abuso, tolerância e dependência."