Um estudo inédito no mundo, realizado por pesquisadores brasileiros, atribui ao consumo de alimentos ultraprocessados pelo menos 57 mil mortes no país em 2019.
O artigo, publicado nesta segunda-feira (7) na revista científica American Journal of Preventive Medicine, revela que, dos 541,2 mil óbitos de indivíduos entre 30 e 69 anos — a OMS (Organização Mundial da Saúde) considera morte prematura abaixo de 70 anos —, 10,5% puderam ser associados aos alimentos ultraprocessados.
Em outro recorte comparativo, o de mortes por doenças não transmissíveis evitáveis (cardiovasculares, diabetes, alguns tipos de câncer, entre outras), os pesquisadores verificaram que ocorreram 261 mil, e, dessas, 21,8% tiveram relação com esses alimentos.
O que são e como reconhecer os alimentos ultraprocessados
Comer mal mata mais que a violência no país. Para ter ideia, o número de mortes violentas em 2021 — homicídios e latrocínios, por exemplo — no Brasil foi de 47,5 mil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, documento divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Os achados servem como alerta, já que o consumo de ultraprocessados cresceu 20% nos últimos dez anos no país, o que representa entre 13% e 21% dos alimentos consumidos pelos brasileiros.
"Buscamos quantificar, mostrar a prioridade pública, que é a questão dos ultraprocessados no Brasil. Isso é uma questão mundial. É muito importante encarar isso como um problema de saúde pública, trabalhar em políticas que favoreçam escolhas saudáveis a partir do padrão alimentar. É isso que vai preservar o que temos de cultura alimentar brasileira", afirma, em entrevista ao R7, o principal autor do estudo, o pesquisador Eduardo Nilson, do Nupens/USP (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde/Universidade de São Paulo) e da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
Segundo o especialista, "essa dieta tradicional é muito saudável e não deve ser substituída pelos ultraprocessados, que têm todas as consequências em relação a mortes e são alimentos que também têm um perfil nutricional pior".
A dieta tradicional à que ele se refere é o famoso arroz, feijão, proteína e salada. Entretanto, muita gente tem optado por macarrão instantâneo, lasanha congelada e refeições vendidas como práticas nos supermercados.
Esses alimentos, que incluem refrigerantes, biscoitos, chocolates, sorvetes, bebidas lácteas, entre outros, possuem uma série de aditivos químicos que influencia na obesidade e no desenvolvimento de doenças como diabetes e hipertensão.
Os principais vilões são sódio, gordura e açúcar, mas não são os únicos, lembra Nilson.
"Pensando que os ultraprocessados levam a esse risco de doença e morte, eles vão ser mediados pelo que a gente chama de nutrientes críticos — sódio, gordura e açúcar —, mas não podemos focar só isso, porque, pelo próprio processo de industrialização, eles acabam destruindo a matriz do alimento, pois têm os aditivos alimentares. Tudo isso afeta a absorção de nutrientes, a microbiota intestinal, e causa inflamação", explica.
Para chegar ao resultado, os pesquisadores no Nupens utilizaram dados recentes da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que abarcam informações sobre a dieta das pessoas. Eles conseguiram filtrar o consumo de ultraprocessados, segundo a classificação NOVA (veja o infográfico abaixo).
"Usamos metodologias de modelagem que são parecidas com o próprio estudo de carga global da doença, no qual você tem um fator de risco e o associa ao desfecho em saúde com o risco relativo que tem na literatura, que é uma evidência robusta, e dados do seu contexto de análise: população, morte e consumo de ultraprocessados. A partir daí, utilizamos esses métodos para ver qual é a fração atribuível: dentro de todos os fatores de risco que afetam o número total de mortes, por exemplo, quanto por cento é especificamente associado ao consumo de ultraprocessados", detalha o pesquisador.
O grupo também estimou que reduzir o consumo de ultraprocessados entre 10% e 50% poderia salvar entre 5.900 e 29,3 mil vidas, respectivamente, a cada ano.
"Se mantivéssemos o consumo que tínhamos havia uma década, seriam 12 mil mortes a menos entre todas aquelas", exemplifica Nilson.
O Nupens leva em conta o que chama de padrão alimentar, que considera, além da escolha individual, o que está disponível e é acessível em termos de renda para cada grupo da população.
Sabe-se, por exemplo, que nos Estados Unidos as pessoas com insegurança alimentar tendem a recorrer a alimentos industrializados, em detrimento dos in natura ou minimamente processados, porque são mais baratos. Esse é um cenário que se reproduz no Brasil e que tem impacto no excesso de peso.
"Historicamente, a gente observa no Brasil que se aproximam cada vez mais as prevalências tanto de sobrepeso quanto de obesidade nas populações mais pobres em relação às mais ricas. Isso tem uma relação direta com a qualidade da dieta. É uma tendência muito similar à americana, em que a gente vê mais latinos, negros, imigrantes [com obesidade]. O público de menor renda é aquele que apresentou maior aumento de peso ao longo das últimas décadas no Brasil", complementa Eduardo Nilson.
De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde 2020, 60% dos adultos brasileiros (cerca de 96 milhões de pessoas) têm excesso de peso. Nesse universo, a obesidade atinge um em cada quatro adultos, ou 41 milhões de pessoas.
Na rede básica, que é a porta de entrada do SUS, somente em 2021, 9,1 milhões de pessoas atendidas tinham diagnóstico de sobrepeso, e 4 milhões, de obesidade, entre elas 624 mil com obesidade grave (grau 3).
Culpar o indivíduo é algo injusto, na avaliação do pesquisador do Nupens, porque o poder público também tem o papel de evitar o adoecimento da população por meio de políticas que estimulem um estilo de vida saudável, que inclui a alimentação.
Uma forma de fazer isso é por meio da informação. No mês passado, entraram em vigor as novas regras de rotulagem de alimentos, um passo importante, na visão de especialistas.
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) agora obriga a presença de avisos de níveis de sódio, gordura e açúcar acima do máximo estabelecido na parte da frente das embalagens.
Mas isso não é suficiente. O especialista considera que é necessário mais atenção em relação à propaganda e medidas como o aumento de impostos de produtos como refrigerante, algo que já é feito em algumas cidades dos Estados Unidos e no México, por exemplo.
A indústria também precisa receber incentivos para a produção de alimentos mais saudáveis, acrescenta o pesquisador.
"A indústria já trabalha isso com nichos específicos, de alimentos sem aditivo, ingredientes naturais, mas, ao mesmo tempo, tem opções falsamente saudáveis — por exemplo, o fato de ser integral, pois muitas vezes não deixa de ser um ultraprocessado."
O país possui um ponto de partida para ampliar ações nessa área: o Guia Alimentar para a População Brasileira. Além de ser uma ferramenta que pode ser usada individualmente, também é essencial quando se pensa no coletivo, como a merenda escolar.
Na visão do pesquisador do Nupens, políticas de combate à fome devem ter como base a agricultura familiar e a alimentação saudável.
Os próximos passos do grupo incluem pesquisas para quantificar não apenas o número de mortes, mas também os impactos econômicos do consumo de alimentos ultraprocessados, já que uma dieta ruim causa internações hospitalares, falta ao trabalho e afastamento previdenciário.