Setor de criação de gado é o que mais concentra casos de pessoas resgatadas de trabalho análogo à escravidão. Com 28% de resgates, a área demonstra que parcela significativa das ocorrências é registrada em áreas rurais.
Em entrevista ao portal Gazeta Digital, o procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso, Danilo Nunes Vasconcelos, esclareceu o que caracteriza trabalho análogo à escravidão e apresentou números sobre as ocorrências do estado. Confira a seguir.
GD - Com bastante frequência são noticiados casos de resgate de pessoas em trabalho análogo à escravidão. O que caracteriza esse tipo de relação de trabalho?
MPT - Diferentemente da escravidão clássica, que se configurava apenas na hipótese de cerceio da liberdade de locomoção do trabalhador, o trabalho escravo contemporâneo é mais abrangente, se caracterizando pelo grave vilipêndio à dignidade humana do trabalhador, e não só quando a sua liberdade de ir e vir é restringida indevidamente.
No Brasil, o fenômeno é regulamentado sobretudo pelo art. 149 do Código Penal, que estabelece serem elementos que configuram o trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (caracterizadas pela grave violação de direitos fundamentais que coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador), jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta danos à sua saúde ou risco de vida), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço por meio de fraudes, isolamento geográfico, ameaças, violências físicas ou psicológicas e retenção de documentos) e servidão por dívida (dívidas ilegais advindas de cobranças ao trabalhador de despesas com transporte, alimentação, moradia e ferramentas de trabalho).
GD - Em Mato Grosso, quais setores são os recordistas em ocorrência de trabalho análogo à escravidão?
MPT - Segundo dados do Observatório de Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravo e do Tráfico de Pessoas, os setores econômicos mais frequentemente envolvidos nos resgates são os relacionados à criação de bovinos (28%) e à fabricação de álcool (27%), seguidos de cultivo de cana de açúcar (11%), cultivo de algodão e outras fibras de lavoura temporária (10%) e cultivo de soja (8%). Neste último caso, muitos trabalhadores são contratados para a atividade de catação de raízes, etapa de preparação do solo para o plantio de soja, em fazendas onde anteriormente se explorava a pecuária. Em Mato Grosso, o número de casos em meio rural é muito superior ao do meio urbano, uma vez que no campo são oferecidos tipos de serviços sazonais que se utilizam de migrantes. Esses trabalhadores frequentemente aceitam propostas sem saber o que vão encontrar, já que têm como base falsas promessas.
GD - Dados recentes mostram que em 2022 foram resgatadas 33 pessoas em trabalho análogo à escravidão em Mato Grosso. Já entre 2019 e 2021 foram 49 resgates. Por que 2022 registrou tantas ocorrências?
MPT - O combate ao trabalho escravo ocorre de forma interinstitucional, pelos vários órgãos que têm essa atribuição, como o Ministério Público do Trabalho, a Auditoria-Fiscal do Trabalho (Ministério do Trabalho), o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União, a Polícia Federal, entre outros. Todavia, além da desinformação sobre o que caracteriza o trabalho análogo ao de escravo, que ainda é grande por parte das pessoas, muitos parceiros importantes, como é o caso da Auditoria-Fiscal do Trabalho, por conta da falta de recursos e de concursos públicos, têm enfrentado dificuldades para atender as demandas que chegam em um país com dimensões continentais como o Brasil. Para se ter uma ideia, o déficit de auditores-fiscais do Trabalho chega a 4 mil.
Além disso, o Brasil enfrentou um contexto de precarização da legislação trabalhista nos últimos anos, o que foi muito favorável à exploração do trabalho escravo. Também contribuiu para essa diminuição o advento da pandemia da covid-19 em 2020 e 2021, que prejudicou muitas fiscalizações e ações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel.
GD - Pandemia da covid-19 interferiu em diversos setores. Neste sentido, houve algum tipo de prejuízo para o recebimento de denúncias?
MPT - Mesmo com as dificuldades geradas pela crise sanitária, o MPT, em conjunto sobretudo com a Auditoria-Fiscal do Trabalho, e também com outros órgãos parceiros de repressão, como as polícias, ou de acolhimento, como os CRAS, não deixou de dar encaminhamento aos casos de trabalho escravo contemporâneo que lhe chegaram ao conhecimento.
Em 2020 e 2021, os dois anos mais marcados pela pandemia da covid-19, o MPT recebeu um total de 75 denúncias de trabalho análogo ao de escravo. Ainda como parte de sua atuação no combate a essa violação de direitos humanos, o órgão instaurou 43 inquéritos civis, firmou 24 termos de ajuste de conduta (TACs) e ajuizou 13 ações civis públicas. Em todo o Brasil, levando em conta o mesmo período e as 24 Procuradorias Regionais do Trabalho (PRTs), os números ficaram assim: 2.245 denúncias, 949 inquéritos civis instaurados, 466 TACs firmados e 200 ações ajuizadas.
GD - Projeto Ação Integrada (PAI) possibilita formação cidadã para pessoas em vulnerabilidade ou vítimas de trabalho análogo à escravidão. Quais os principais números da iniciativa quanto ao ano de 2022?
MPT - O Projeto Ação Integrada (PAI) atua justamente para buscar a reinserção no mercado de trabalho de maneira decente, qualificando os trabalhadores egressos do trabalho escravo ou vulneráveis a essa exploração. O panorama estadual do enfrentamento ao trabalho escravo e de assistência às vítimas é positivo, e os resultados do MPT nas operações integradas têm sido efetivos também no atendimento às vítimas. A vítima resgatada nessa situação tem acesso à capacitação, assistência social e saúde.
O projeto, instituído em 2009, é coordenado pelo MPT em parceria com a Superintendência Regional do Trabalho de Mato Grosso (SRTb) e a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), e já contou com o apoio técnico da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em Mato Grosso, o PAI já realizou ações em 91 dos 141 municípios mato-grossenses, com oferta de 64 cursos. De 2009 a 2022, foram atendidos(as) 2817 trabalhadores(as), sendo 902 egressos(as) e 1195 vulneráveis. Desse total, 69% são do sexo masculino e 31% do sexo feminino. 55% têm entre 29 e 50 anos, sendo a maioria da região Centro-Oeste e do Nordeste.
GD - Quais os principais desafios para inserção dos trabalhadores resgatados no mercado de trabalho formal?
MPT - Os principais desafios para a inserção dos trabalhadores resgatados no mercado de trabalho formal são a baixa instrução educacional e a pouca capacitação profissional dessas pessoas. Daí a importância do Projeto Ação Integrada (PAI), que objetiva, com a qualificação profissional dos trabalhadores resgatados, romper esse círculo de exploração a que eles estão submetidos. Caso não haja a respectiva qualificação profissional, a tendência é que retornem a situações de trabalho escravo. Tanto é assim que até um tempo atrás era muito comum trabalhadores que já foram resgatados serem encontrados novamente na mesma situação de exploração.
GD - Qual o perfil dos trabalhadores resgatados? Quais promessas são feitas para essas pessoas pelos empregadores?
MPT - Os trabalhadores resgatados são geralmente homens, jovens, com baixa ou nenhuma escolaridade, com pouquíssima qualificação profissional e provenientes de municípios pobres, onde as políticas públicas sociais são deficitárias.
Quanto às promessas, comumente o engodo envolve a divulgação de falsas condições de trabalho, com salários atrativos e moradia e alimentação gratuitos. No entanto, quando se chega efetivamente ao local de trabalho, quase nada do que foi prometido se confirma.