Por unanimidade, a Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) rejeitou um recurso do Ministério Público, que buscava que o crime que resultou na morte do soldado alagoano Abinoão Soares de Oliveira, ocorrido em 2010 durante treinamento da Polícia Militar no Lago do Manso, fosse classificado como tortura. O Judiciário ainda proveu parcialmente o recurso da defesa do réu Dulcézio Barros Oliveira, o que resultou na redução da pena.
Tanto o MP quanto a defesa de Dulcézio recorreram contra a decisão proferida pela 11ª Vara Especializada de Justiça Militar, que condenou o réu pela prática do crime de maus tratos com resultado de morte à pena de 6 anos de reclusão em regime semiaberto.
O MP pediu a reforma da sentença para que fosse afastada a desclassificação como crime de tortura e requereu a condenação do réu por este crime. Já a defesa de Dulcézio pediu sua absolvição por “ausência de prova da autoria delitiva” e, caso não fosse concedida, a reforma da sentença para reduzir a pena e a readequação para o regime aberto.
O relator, desembargador Rui Ramos, citou que o caso ocorreu em abril de 2010 na 4ª edição do curso Tripulante Operacional Multimissão, sendo Dulcézio denunciado por tortura em decorrência do excesso de “caldos” realizados em Abinoão, que resultaram em sua morte.
O magistrado então falou um pouco sobre a prática de “caldos” como forma de instrução e treinamento, além da pressão psicológica utilizada normalmente nestes tipos de curso.
“A desestabilização é aplicada ao aluno em aulas na piscina, rio ou mar, com o intuito de pressioná-lo para baixo na água, submergindo-o, simulando eventual afogamento que venha a passar em sua carreira, queda da aeronave em meio líquido ou até mesmo no salvamento de algum companheiro ou vítima, já que esta última, ao perder o fôlego, tentará ao máximo se salvar, inclusive se agarrando no salvador, levando-o para baixo”.
No entanto, no caso de Abinoão, o desembargador entendeu que ficou “fartamente comprovada” a materialidade delitiva.
“Nesse sentido, há certidão de óbito da vítima Abinoão, boletim de ocorrência, boletim de atendimento médico, laudo pericial e de necropsia, inclusive este último concluindo que a morte ocorrida deu-se por asfixia mecânica causada por afogamento”.
Com relação ao pedido do MP, para a classificação de crime de tortura, o relator explicou que este crime necessita que exista um dolo próprio, uma intenção. Já no crime de maus tratos há apenas a vontade consciente de maltratar a vítima.
“Para configuração do crime de tortura, [...], seria necessário que ressaísse dos autos, de forma indene de dúvidas, o propósito de padecimento da vítima, com comprovação da intenção de causar sofrimento físico ou psicológico por vingança, ódio ou outro elemento que demonstrasse vilania do autor. Contudo, no caso em comento, não se vislumbra o dolo específico do réu, ainda que se alegue perseguição ou aplicação de ‘caldos’ com vontade livre e consciente de fazer a vítima desistir do curso em razão de sua origem geográfica”.
O desembargador não viu provas nos autos de que Abinoão era perseguido por ser de outro estado e entendeu que a carga de pressão, esforço físico e alta exigência de resistência foi cobrada de todos os que participavam do curso. Com base nisso votou pela rejeição do pedido do MP.
Com relação ao pedido de absolvição ele afirmou que o conjunto de provas é claro, suficiente e “praticamente uníssono” em apontar que Dulcézio participou do ato. Com este entendimento ele rejeitou o pedido.
Já sobre a redução da pena, o magistrado considerou que o pedido deve ser deferido e ainda votou pela alteração do regime inicial para o aberto. A pena definitiva foi fixada em 3 anos, 4 meses e 24 dias de reclusão.
“É verdade que, quando o voto divergente inaugurado pelo juiz militar desclassificou a conduta do recorrente para o crime de maus tratos, aderiu à fundamentação do juízo auditor, inclusive no tocante à pena, divergindo tão somente quanto à tipificação. Porém, com a nova qualificação da conduta, necessário se faz readequar o processo dosimétrico às peculiaridades do caso”, justificou.
O caso
O treinamento que resultou na morte de Abinoão foi ministrado pelos tenentes Carlos Evane Augusto e Dulcézio Barros de Oliveira, oficiais do Batalhão de Operações Especiais de Mato Grosso (BOPE-MT). A vítima era policial militar no estado de Alagoas, sendo convocado pela Força Nacional de Segurança Pública (União Federal) a fazer parte do treinamento organizado pelo Estado de Mato Grosso.
Em 2011, o MP ofereceu denúncia contra 29 policiais militares e pediu a prisão preventiva de sete deles por conta do treinamento realizado em 24 de abril de 2010.
Além de Abinoão, mais soldados foram vítimas dessa prática, no entanto apenas ele acabou morrendo durante os treinamentos. O promotor do caso declarou à época que o número de torturados chegou a 19 e que as torturas foram detectadas em pelo menos 25 situações diferentes ao longo do curso.