Após dois meses na fila de espera, a pequena Lavínia Cruvinel conseguiu o tão esperado coração, que foi transplantado no dia 31 de maio. A garota, de 10 anos, foi diagnosticada com miocardiopatia hipertrófica aos 6 meses de vida.
A doença, segundo o Manual MSD de Diagnóstico e Tratamento, pode ser congênita ou adquirida e provoca intensa sobrecarga dos ventrículos do coração, o que reduz a capacidade do órgão de encher as cavidades com sangue.
Em uma cirurgia de quatro horas, Lavínia recebeu o coração doado por uma família, cujos dados são mantidos em sigilo.
Ela faz parte das mais de 3.000 pessoas que já receberam um órgão transplantado em 2023, de acordo com dados do SNT (Sistema Nacional de Transplantes), do Ministério da Saúde (atualizados até 5 de junho).
Atualmente, o Brasil encontra-se com uma fila de 39.303 pessoas que aguardam um órgão, das quais 36.132 (92%) esperam um transplante de rim, segundo o SNT.
"Se considerarmos a adição de tecidos, como pele e córnea, a fila se torna ainda mais extensa", afirma o nefrologista Valter Duro, da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos).
O médico nefrologista Filipe Maset, da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo, explica o motivo do crescimento da espera.
Um deles foi a pandemia, que diminuiu a circulação de pessoas e, consequentemente, mortes por acidentes, por exemplo, que poderiam resultar em mais doações.
Além disso, existia uma demora para certificar que aquele doador não tinha Covid-19, de forma a possibilitar o transplante, o que diminuiu a viabilidade.
Segundo o RBT (Registro Brasileiro de Transplantes), em 2020, mesmo com a pandemia, as taxas de doação de órgãos foram de 15,8 por milhão de pessoas, uma queda de 2,3% em comparação com o cenário pré-Covid-19. Em 2019, a taxa de doação foi de 18,1 por milhão de pessoa.
"Outra razão é que houve grande evolução tecnológica e acessibilidade aos tratamentos, o que aumenta a sobrevida desses pacientes e, assim, quanto mais gente na fila, maior a espera."
O caso se aplica à fila para o recebimento dos rins, que tem um tempo de espera médio de três anos. Por haver máquinas capazes de fazer a hemodiálise, mantendo a função mesmo com a falência do órgão, tal tecnologia permite que as pessoas fiquem mais tempo aguardando.
No entanto, essa espera pode variar de acordo com a necessidade e funções vitais exercidas.
"Uma pessoa que precisa de um coração, de um pulmão, não pode aguardar. Ou o transplante acontece logo ou ela morre", esclarece Maset.
Era o caso de Lavínia. Em 28 de março, a criança sofreu uma parada cardíaca devido à progressão da doença e foi encaminhada a um hospital. Foram cerca de 60 dias isolada na UTI, apenas com a companhia dos pais e separada da irmã.
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Mesmo após o recebimento do órgão, ela ainda terá de ficar sob observação, internada por mais 30 dias, para saber se haverá rejeição do coração recebido.
Depois, o acompanhamento será feito periodicamente — o primeiro ocorrerá depois de 15 dias. Após esse período, as avaliações passam a ser mensais, trimestrais e anuais, consecutivamente.
Valter Duro alega que os números da fila, assim como o de pessoas transplantadas, mudam todos os dias, conforme as necessidades aparecem, assim como mortes e doações realizadas.
Dados do SNT mostram que os estados que mais realizaram transplantes, até o momento, foram São Paulo (998), Minas Gerais (419), Paraná (340), Rio de Janeiro (311) e Rio Grande do Sul (293).
Já os lugares com menos transplantes foram o Acre e Alagoas, ambos com apenas cinco transplantes cada um, seguidos por Piauí (11), Mato Grosso do Sul (13) e Rio Grande do Norte (19).
A disparidade ocorre, segundo o especialista da ABTO, porque muitos lugares não realizam os procedimentos — seja de modo geral ou para órgãos específicos. Assim, muitos pacientes que estão na fila de espera acabam se deslocando para os estados que fazem esses procedimentos.
Outra adversidade enfrentada é a autorização da família para a doação. O nefrologista da BP alega que, mesmo que a pessoa tenha manifestado em vida o desejo de doar, a palavra final vem da família, que muitas vezes nega, seja por motivos de logística e rapidez para o velório, seja por questões religiosas ou falta de informação.
Valter Duro ressalta ainda que, em muitos casos, a falta da comprovação da morte cerebral acaba impossibilitando o processo, descartando potenciais doadores.
A doação de órgãos pode ser feita de duas formas: com doadores vivos, que podem ofertar um dos rins, parte do fígado, parte da medula ou parte dos pulmões; e por doadores mortos, que podem doar rins, coração, pulmão, pâncreas, fígado e intestino, além de tecidos como córneas, válvulas, ossos, músculos, tendões, pele, cartilagem, medula óssea, sangue do cordão umbilical, veias e artérias.
O nefrologista Filipe Maset explica que a doação de órgãos de pessoas mortas, por só poder ser feita a partir da constatação de morte cerebral, acaba diminuindo o número de doadores.
Para o procedimento, após a morte do doador, o corpo passa por exames de dois neurologistas, que atestam a inatividade cerebral, e por exames de imagem que comprovem a falta de fluxo de atividades encefálicas e, assim, é feito o diagnóstico de morte.
Certificada a morte encefálica, é necessário saber se a pessoa não tinha doenças ou comorbidades, se é compatível, se manifestou em vida o desejo da doação dos órgãos e se há autorização da família para a realização do transplante após a morte.
Com relação a doadores vivos, que podem ofertar um rim, devem ser pessoas saudáveis, de modo que a falta de um dos órgãos não afete sua saúde posteriormente. Não podem ser pessoas com comorbidades, como diabetes e cardiopatias, nem com alterações anatômicas e renais. Além disso, elas precisam ter a compatibilidade atestada em exames e manifestar seu interesse para a doação.
Se o doador for uma pessoa da família de até terceiro grau ou casada com certidão com quem vai receber o órgão, não há necessidade de autorizações judiciais. Para doadores não relacionados, como amigos, é necessário o documento que autorize a doação.
Para os receptores, as condições são a certificação de que estão aptos a participar de uma cirurgia de médio porte, de que não estão em tratamento para câncer nem nenhum tipo de infecção e de que são compatíveis com os doadores.
Os órgãos devem ser realocados de um organismo para o outro dentro de um período de 12 horas, de modo que suas funções não sejam prejudicadas.
"Nós que estamos do outro lado, que é o lado que precisa da doação, não torcemos para alguém morrer para salvar outras pessoas. Torcemos para que a família tenha amor ao próximo e autorize a doação de órgãos. Sabemos que a família doadora gostaria muito que seu ente querido voltasse para casa com seu sorriso lindo, mas isso não é possível. O que é possível é salvar várias vidas através da doação de órgãos. Doar órgãos é conseguir transformar sua dor em um ato nobre de amor", alega Michelle Cruvinel, mãe de Lavínia.
Para quem deseja se tornar um doador, é possível fazer um cadastro na Adote (Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos), que emite a carteirinha para os interessados, pelo site.