Dois anos depois de o Talibã ter reassumido o poder no Afeganistão, uma das mais destacadas líderes da oposição do país, a ex-deputada afegã Fawzia Koofi, afirma que a comunidade internacional falhou ao não cumprir a promessa de defender a democracia no seu país. "Foi um fracasso moral", diz Fawzia, que também foi a primeira mulher a ocupar o cargo de vice-presidente da Assembleia Nacional do país islâmico.
Hoje com 48 anos, Fawzia iniciou sua carreira política aos 26, logo após a queda do regime do Talibã, em 2001, e foi a líder da campanha De Volta à Escola, que promovia a educação de meninas no Afeganistão. De 2002 a 2004, ela trabalhou como agente de proteção infantil no Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que visava proteger crianças de violência, exploração e abuso. Em 2005, foi eleita deputada pela primeira vez.
Após a volta do Talibã ao poder, Fawzia foi forçada a deixar o país e atualmente mora na Inglaterra. Ela conta que, mesmo longe de seu país, trabalha todos os dias em prol da causa das meninas e mulheres afegãs. Confira a seguir a entrevista da ativista ao R7:
R7 — O que aconteceu com a senhora quando o Talibã voltou ao poder dois anos atrás?
Fawzia — Quando minha província [Badaquistão], que fica no nordeste do Afeganistão, caiu nas mãos do Talibã, fui tentar negociações em Doha, no Catar. Isso foi em julho de 2021 [houve conversas de paz em Doha, que terminaram em 12 de agosto, antes da queda de Cabul].
"A caminho do aeroporto, vi o rosto das pessoas, elas não pareciam vivas. Cabul era como um cemitério de seres humanos vivos".
Mas, infelizmente, quando eu estava em Cabul, todo o país caiu nas mãos do Talibã. Portanto, nunca planejei deixar o Afeganistão. Assim que o Talibã assumiu o controle, eles trouxeram seguranças para minha casa e não permitiram que eu saísse. Minhas filhas conseguiram ir embora porque são jovens e esperavam continuar seus estudos.
Eu estava mais preocupada com a segurança delas do que com a minha. Porque, sendo do ramo da política, você antecipa algum tipo de risco para sua vida, e eu sempre fui atacada. Só pelos homens do Talibã foram umas três ou quatro vezes. Fiquei em Cabul por três semanas e, após muita pressão da comunidade internacional, houve alguma negociação, e eles me permitiram sair.
"Os EUA e outros países não falharam apenas com o Afeganistão, falharam globalmente".
Como a senhora avalia a saída dos Estados Unidos e de tropas de outros países do Ocidente do Afeganistão?
Acho que [os EUA e outros países] não falharam apenas com o Afeganistão, falharam globalmente. Foi um fracasso moral para a comunidade internacional. Por 20 anos, a comunidade internacional prometeu ao povo afegão que o apoiaria para alcançar a democracia e os direitos das mulheres. Na época, as mulheres afegãs estavam realmente na vanguarda da proteção de valores — não apenas para si mesmas, mas também para o mundo. Valores de igualdade, de justiça.
Mas, mesmo sob a presença americana no Afeganistão, o Talibã considerava as mulheres seu principal inimigo. É por isso que eles continuamente têm como alvo mulheres como eu. Infelizmente, quando a comunidade internacional decidiu deixar o Afeganistão, eles nem consultaram as mulheres sobre o que elas precisavam, nem se importaram com o povo. Nós é que fomos as principais vítimas. Então, as pessoas realmente perderam a esperança e a confiança na comunidade internacional.
"O Talibã realmente não se importa com o que o resto do mundo pensa. E isso é perigoso para a segurança global".
Dois anos depois da tomada do Talibã, a Human Rights Watch afirma que o Afeganistão vive "um pesadelo humanitário e de direitos humanos", enquanto a ONU diz que o país vive um "apartheid de gênero" em relação às mulheres. Como a senhora descreveria a situação?
Sim, a situação é um "apartheid de gênero", uma série de crimes contra a humanidade. Gradualmente, eles tornaram a situação mais difícil para as mulheres. Elas perderam a vida, seus filhos perderam a vida por causa da pobreza, porque as mulheres não podem trabalhar, então tudo isso são crimes contra a humanidade.
Mas as violações dos direitos das mulheres são apenas um pequeno exemplo de como está a situação. Existem muitos, muitos crimes contra a humanidade, violência e discriminação, mas o Talibã não os revela. Há deslocamentos forçados de pessoas, o apagamento sistemático de mulheres da esfera pública. Por causa da censura, as pessoas não ficam sabendo disso.
A última coisa que fizeram foi pedir a cerca de 60 mil mulheres que tinham salões de beleza que fechassem as portas. Esses salões eram um meio de renda para as mulheres. Milhões de meninas não vão à escola. Milhares de mulheres não vão trabalhar. As mulheres não conseguem nem sair de casa. Eu vivenciei isso. Você fica sobrecarregada, frustrada, deprimida. Quando uma mulher sai, apenas para visitar sua família — porque não pode ir muito longe —, o Talibã a aborda: "Por que você está na rua?" Esse sentimento de ser controlado é muito humilhante.
Como compara o Afeganistão de hoje com o Afeganistão de 1996, durante o primeiro regime do Talibã?
O Afeganistão não é o mesmo de quando o Talibã esteve no poder pela primeira vez. Em 1996, eles proibiram as mulheres de ir à escola, e eu era uma delas. Eu poderia ser médica hoje, mas eles me proibiram de ir para a universidade, junto a outras muitas mulheres e meninas. Mas não houve resistência. As pessoas ficaram desapontadas, mas não ousaram se opor.
Hoje, você pode ver que a resistência contra o Talibã não está apenas na comunidade internacional e nas mulheres que deixaram o Afeganistão, mas também dentro do país. Essas mulheres corajosas realmente assumem o risco. Portanto, acho que o povo do Afeganistão se transformou, e acho que o Talibã deveria ter se adaptado a essa transformação, o que não aconteceu.
Apesar de a ONU não reconhecer o regime do Talibã, parece que nada está sendo feito para mudar a situação no Afeganistão. Por quê?
Acho que os países estão divididos em relação ao envolvimento deles com o Talibã. Infelizmente, o mundo também não conseguiu chegar a uma espécie de posição unida em termos de quais são os princípios que eles querem manter nas negociações com o Talibã. Por exemplo, os países da região querem fortalecer economicamente o Talibã, e não veem a violação dos direitos humanos e dos direitos das mulheres como um grande problema. O Norte global, por assim dizer, o mundo ocidental, também se envolve com eles.
Para nós, as mulheres do Afeganistão, eles dizem que expressam sua preocupação com as violações dos direitos das mulheres cometidas pelo Talibã, mas também ouvimos que eles não estão destacando seriamente o que o Talibã faz com as mulheres, em suas reuniões com o grupo. Então, acho perigoso esse processo de normalização do que está acontecendo no Afeganistão. O Talibã realmente não se importa com o que o resto do mundo pensa, desde que possam trabalhar com países da região. E isso é perigoso para a segurança global porque a vitória do Talibã inspirou muitos outros grupos extremistas.
A senhora mora hoje na Inglaterra. Como consegue atuar, de longe, na política do Afeganistão?
Sim, estou estabelecida na Inglaterra, mas estou em constante luta com a esperança de ser capaz de mudar o sistema político do Afeganistão. Acho que, sem mudar o ecossistema político no país, nada mais será mudado. Se o Talibã não disser "sim" a um processo político que envolva de forma significativa todos os grupos étnicos, religiosos e as mulheres, a situação continuará politicamente instável; a segurança, frágil; e a economia, terrível.
É por isso que estamos tentando mobilizar os grupos de mulheres e ver se elas conseguem mobilizar também os políticos homens para um novo processo político. Estamos nos envolvendo com a comunidade internacional, estamos constantemente nos encontrando com eles para compartilhar nossos pontos de vista, perspectivas para o Afeganistão. Esperamos em breve ter uma reunião de cúpula com mulheres para traçar um roteiro de como queremos que o Afeganistão seja, basicamente, e qual é a definição de um processo de paz. Desde que saí do Afeganistão, não descanso um dia sequer.
Como a senhora tem acompanhado a situação das mulheres e meninas no Afeganistão, estando no exterior?
Estou em contato com as mulheres dentro do Afeganistão. Elas ainda me consideram sua representante, ainda acham que posso ajudar a mudar a situação e ainda têm muita fé. Procuramos amplificar suas vozes, levar suas vozes para a ONU, para o Conselho de Direitos Humanos e outras entidades. Só não estou no Afeganistão fisicamente. Graças à conectividade, converso com mulheres de todo o país todos os dias.
Obviamente, não conseguimos atender a todas as suas expectativas porque a situação é tão terrível que elas esperam que eu faça tudo por elas, desde ajudá-las a conseguir empregos, bolsas de estudos até a sair do país, a ajudar seus filhos a sair. Não posso fazer tudo isso porque o mundo também mudou de foco [com a guerra na Ucrânia], o que dificulta que voltemos a atenção para as mulheres do Afeganistão. É doloroso, às vezes, mas estou tentando. Todos os dias, estamos cultivando as sementes da liberdade.
Desde cedo a senhora descobriu que ser mulher no Afeganistão não era algo fácil. Como superou essas barreiras para chegar à Assembleia Nacional Afegã?
Desde que eu nasci, muitas pessoas não ficaram felizes por eu ser uma menina [após o parto, a mãe de Koofi a deixou ao sol para morrer, mas se arrependeu depois]. Mas esse não foi meu único desafio. Comecei a perceber, muito cedo, que eu era invisível. Que, como mulher, eu não era ninguém. Então, eu realmente tive que lutar para encontrar meu caminho, para me tornar visível, para me provar uma parte efetiva da sociedade.
Essa luta constante para ser visível me deu a razão, a paixão, a força. Minha mãe não teve educação. Embora ela não estivesse feliz por eu ser menina, como mãe, imagino que ela sempre tentou compensar o primeiro dia, em que não me deu o amor que eu merecia. Ela sempre me dizia: "Você será alguém no futuro". Não sei de onde veio essa confiança. Ela acreditava que eu tinha uma força escondida dentro de mim e que, um dia, iria trazê-la para fora.
Tinha apenas 3 anos quando perdi meu pai, 3 anos e meio quando tivemos que deixar nossa aldeia. Fui espancada pelos jihadistas [militantes islâmicos], minha irmã queria que minha mãe me jogasse no rio porque eu não conseguia andar, e os jihadistas estavam prestes a prender minha mãe e minha irmã e matá-las.
Todas essas histórias tristes não me transformaram em vítima, mas me impactaram de uma forma que pensei: “Eu preciso fazer algo, preciso ser alguém". Essa crença da minha mãe me deu a razão de ser alguém. Mas até hoje estou lutando pelo meu gênero.
Que futuro sonha para suas filhas e para as mulheres e meninas afegãs?
Todo o trabalho das minhas filhas é voltado para o Afeganistão, embora elas morem no exterior. Elas apoiam mulheres e meninas afegãs com seus projetos, criam plataformas online para se conectar com mulheres dentro do país, as ouvem e, às vezes, tentam também conectar algumas dessas mulheres sobreviventes com a imprensa para que possam contar suas histórias, para manter suas histórias vivas, para informar o mundo. Quando você cresce em certas circunstâncias, não é preciso ensinar a suas filhas o que elas devem fazer. Acho que elas também têm essa paixão e querem ajudar seu país.