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Primeira feira livre de São Paulo sobrevive mesmo em meio à Cracolândia

No Dia do Feirante, trabalhadores relatam episódios de violência e desafios de ter barracas na região da Santa Ifigênia

Data: Sexta-feira, 25/08/2023 09:44
Fonte: Sandra Lacerda*, do R7

O local que antes era movimentado, barulhento e colorido hoje é vazio, calado e assustador. A feira de quinta da Santa Ifigênia, mesmo lugar onde ocorreu a primeira feira livre de São Paulo, há 109 anos, resiste à Cracolândia. Mas no Dia do Feirante, celebrado nesta sexta-feira (25), trabalhadores relatam os riscos e desafios de manter suas barracas na região.

O dia 25 de agosto, escolhido para homenagear esses comerciantes, é a data em que ocorreu a primeira feira livre da capital paulista, em uma terça-feira do ano de 1914. A feira de quinta da Santa Ifigênia acontece no mesmo local, no trecho entre a rua dos Andradas e o largo General Osório. O local é bem perto da rua dos Gusmões, o atual epicentro da Cracolândia.

Além das quintas, a feira hoje acontece aos domingos, das 8h às 14h. É quando o movimento é maior – e o perigo também.

Violência na feira

"A feira de domingo era a nossa melhor feira da semana. Agora é um perigo para nós, feirantes, e para os clientes. Ninguém mais quer vir aqui com tanta violência assim. O nosso lucro já caiu em mais de 50%", diz Cristiane Nunes, de 43 anos, que vende frutas na região há mais de 20 anos.

A feirante, que sempre trabalhou na Santa Ifigênia, conta que viu com os próprios olhos o aumento de usuários de droga e moradores de rua de dois anos para cá. Segundo ela, o mau cheiro, a sujeira e o medo são os principais fatores que afastam as pessoas da feira.

"Tem dia que a gente chega 5h para montar as coisas e tem gente morta na rua. Qualquer um se assusta com isso", relata.

Cristiane afirma que em todos os dias de feira há casos de violência. "A todo momento eles ficam pedindo frutas, papelão, tudo... eles estão sempre pedindo alguma coisa, e se você não der, eles ficam nervosos, te agridem e jogam fruta em você", diz.

A violência na região foi motivo para que muitos fregueses de Cristiane se mudassem para outros locais. "Eu tinha clientes de anos que se mudaram, foram embora. Eles vieram aqui se despedir de mim e dizer que não tinha mais condições de ficar".

"Estilo Cracolândia"

Embora a violência e o medo constante sejam fatores decisivos na hora de escolher onde morar, há também pessoas que já se acostumaram com o "estilo Cracolândia".

Aline Cristina, de 25 anos, vendedora de roupas em uma loja da região, comia tranquilamente um pastel com caldo de cana, sentada em uma das barracas da feira, enquanto mexia no celular.

A jovem, que mora no centro de São Paulo desde que nasceu, sempre frequentou a feira e come pastel na mesma barraca, confessa ter ficado desatenta na região algumas vezes. "Fui assaltada sete vezes. Em cinco delas, eu estava andando na rua. Nas outras duas vezes, puxaram meu celular pela janela do carro".

Aline acredita que as pessoas que roubam os celulares são bandidos infiltrados entre os usuários de droga. "Aqui tem uma máfia de celular. Não são os usuários que pegam, eles não têm força para correr", diz.

Mesmo com os assaltos e a violência, a jovem diz que gosta de onde mora e que não trocaria o centro da cidade. A proximidade do trabalho e a facilidade de acessar o metrô são os principais fatores para continuar morando na região. 

"Você piscou, eles te roubam"

Cristiane Nunes perdeu as contas de quantas vezes teve as frutas de sua barraca roubadas. Entre peras e maçãs, a feirante diz que precisa estar sempre de olhos bem abertos e que, muitas vezes, acaba arrumando confusão com usuários de droga para não perder sua mercadoria.

Liliane Gayer, de 47 anos, e o marido, João Alves Carlos, trabalham juntos na feira há cinco anos. O casal, que vende cebolas e batatas, conta que também já discutiu com muitos usuários de droga que importunavam seu comércio.

"Eles roubam a gente, levam tudo. Vêm para cima, afrontam a gente e incomodam os clientes que estão comprando na nossa barraca", conta.

A mulher disse ainda que é comum os usuários de droga roubarem lojas da região e irem para a feira tentar vender a mercadoria. “Depois eles vêm oferecer pra gente eletrodomésticos, produtos bons, e tudo por R$ 5 ou R$ 10, o suficiente pra eles comprarem droga. A gente sabe de onde vem, a gente sabe que é roubado e a gente não compra", afirma.

Quando questionados sobre sair dali e trabalhar em outra feira, os feirantes disseram que no momento este é o ganha-pão da família e que, embora a situação seja estressante e tenham o desejo de sair, precisam continuar. 

Arrastão na feira

Talita de França, de 33 anos, trabalha com feira há 18 anos e hoje está na barraca de milho. Ela lembrou o dia em que a polícia decretou toque de recolher porque os usuários de droga pretendiam fazer um arrastão na feira. "Lembro de guardar os milhos e desmontar a barraca correndo. Todos os feirantes ficaram desesperados", conta.

 

"Antes a gente via na TV, agora a gente está vivenciando isso. A gente chega 5h da manhã e vê o fluxo de mais de cem deles. Não tem horário, não tem local. É assustador"

TALITA DE FRANÇA, FEIRANTE

A feirante disse que a quantidade de pessoas na feira caiu muito e que não consegue mais falar com os fregueses como antes. "Não dá nem tempo de conversar, as pessoas vêm com medo. Elas vêm, compram o que têm que comprar e vão embora", diz.

Embora os feirantes paguem segurança particular para tentar conter a importunação dos usuários de drogas que entram na feira, Talita afirma que a violência é tanta que seria necessário um segurança para cada barraca. 

Segurança na feira

"É difícil, é tenso". Essas foram as primeiras palavras do segurança Daniel da Silva, de 35 anos, quando questionado sobre seu trabalho na feira da Santa Ifigênia. Silva, que atua na região há mais de um ano, disse que já foi agredido inúmeras vezes por usuários de drogas. 

"Uma vez precisei tirar um dos 'noias' de dentro da feira porque ele estava assustando os clientes. Depois de um tempo ele voltou com uma barra de ferro e correu para cima de mim." Silva, que usa um rádio para se comunicar com os outros seguranças, disse que precisou pedir reforço da equipe. 

A esperança unânime dos funcionários e frequentadores da feira é que o local se torne seguro um dia. Feirantes dizem que se sentem sozinhos e desamparados, já que os usuários de drogas não respeitam nem a polícia.