As enchentes e enxurradas estão entre os maiores dramas do século XXI. As enchentes são causadas pelas mudanças climáticas, a ocupação das zonas de risco pela população menos favorecida e as alterações nos cursos dos rios por obras de infraestrutura e o desmatamento irregular. Já as enxurradas, geralmente, estão diretamente relacionadas ao acúmulo de água das chuvas sem meios necessários para o seu escoamento. Em fevereiro, o excesso de chuvas em um curto espaço de tempo já fez 23 cidades de Mato Grosso entrarem em estado de alerta. Dessas, cinco já decretaram estado de emergência.
Os municípios de Comodoro, Nova Brasilândia, Poconé, Guarantã do Norte e Mirassol D’Oeste foram reconhecidos esta semana, pelo governo federal, como locais em situação emergência. A Defesa Civil alerta que quando o órgão é acionado é porque a situação já é preocupante. Nesses casos, para não estrangular o orçamento das prefeituras que na maioria das vezes já é apertado, o município aciona a Defesa Civil que levanta o relatório da situação e encaminha para o governo federal que de imediato viabiliza recursos já predestinados ao decreto de emergência. Esse estado permite ao município executar as contratações necessárias sem os devidos processos de licitação.
Duas Cidades de Mato Grosso já tiveram barragens rompidas, Mirassol D’Oeste e São José do Rio Claro. Em Mirassol, o rompimento da barragem da represa de captação de água do córrego Carnaíba, que abastece o município, deixou toda a cidade sem água. Cerca de 26 mil habitantes da cidade foram prejudicados diretamente.
Outra em estado de gravidade é São José do Rio Claro, onde os prejuízos foram menores para a população, apesar de o município ter registrado o rompimento de cinco barragens nos últimos dias. No início de fevereiro, a barragem da pequena central hidrelétrica da fazenda Agromar, do Grupo Bom futuro, não suportou as chuvas e rompeu. Segundo a Defesa Civil, o risco de uma situação ainda mais grave no município ainda não está descartado.
Na capital, o nível do rio Cuiabá está abaixo de 5.0, o que é considerado normal segundo a Defesa Civil. No entanto, Cuiabá e Várzea Grande, as duas principais do estado, estão entre as cidades em alerta. No mapa da Defesa Civil também aparecem Alto Araguaia, Barra do Garças, Cáceres, Cláudia, Campo Novo do Parecis, Colniza, Comodoro, Cotriguaçu, General Carneiro, Guarantã do Norte, Juruena, Mirassol D’Oeste, Nova Brasilândia, Poconé, Rondonópolis, São Félix do Araguaia, São José do Rio Claro, São José dos Quatro Marcos, Sorriso, Nova Bandeirantes e Porto Esperidião.
Mas o homem não pode ser responsável por todos esse caos. Em alguns casos, essas enchentes são um misto de uma ocorrência natural, intensificada pelo processo de urbanização desordenado e sem planejamento. Ou seja, temos parte da culpa no problema.
Em Barão de Melgaço, 120 km de Cuiabá, o nível do rio Mutum já preocupa bastante as autoridades. Ali, as águas do Pantanal já chegaram a 8,44 metros, quando o nível máximo é de 9.30 milímetros. Outro problema grave para o poder público nessa região é que a cidade é povoada por um grande número de ribeirinhos, na maioria, famílias inteiras que vivem da pesca e reside às margens do rio Paraguai.
“O mais complicado é que essas pessoas estão adaptadas e de certa forma preparadas para esse período de cheia. Quando o rio sobe, o ribeirinho já começa a suspender os móveis e dormir em redes. Alguns, na maioria os que têm crianças pequenas, chegam a até sair de suas residências, mas provisoriamente”.
Falta de drenagem
O excesso de cimento e asfalto também cria problemas para que o solo absorva a água das chuvas. A pavimentação das ruas e a cimentação de quintais e calçadas poderiam ser suavizadas com a correta instalação de sistemas de drenagem. Esses são meios para ajudar a conter ou a escoar o curso das enxurradas através das “bocas de lobo”, “piscinões” ou até mesmo dutos que podem levar o excesso de água para outro local. No entanto, quando esses sistemas são ineficientes e mal construídos, ocorrem graves problemas nas épocas de chuva.
Para piorar a situação, muitas vezes esses sistemas de drenagem são prejudicados pelo excesso de lixo descartado de maneira incorreta, poluindo as cidades e entupindo valas que teriam a função de acumular água em vez de resíduos sólidos. A consequência é a elevação do nível das águas além do esperado. Essa é a situação que vemos correntemente em muitas cidades de Mato Grosso quando há chuva intensa.
Cuiabá e Várzea Grande podem até não correr muitos riscos de grandes enchentes, mas em dias de chuvas são registrados vários pontos de alagamento e enxurrada.
Choque cultural traz mais riscos em Cuiabá e VG
Em Cuiabá e Várzea Grande também há outro problema, existe uma cultura de se viver próximo aos rios, justamente onde há mais risco de enchentes. Nessas regiões é possível encontrar principalmente os remanescentes de famílias ribeirinhas.
“As prefeituras e o Estado até tentam retirar essas pessoa dessas regiões, mas a própria população não se atenta ao perigo de morar próximo às margens dos rios, colocando em risco a própria vida”, alerta o sargento José Bruno de Souza, gerente de Monitoramento e Alerta da Defesa Civil do Estado de Mato Grosso.
Em Várzea Grande, uma região de Área de Prevenção Permanente onde podemos encontrar esse tipo de situação é a Lagoa do Jacaré. O local está habitado por moradores em meio à precariedade e alagamentos contínuos. Os moradores vivem literalmente em meio à água.
Ali a circulação de carros é quase impossível. Os pedestres que transitam pela região caminham com a água batendo até no joelho. O problema é que a Prefeitura já realizou inúmeras tentativas fracassadas de retirar essas famílias da região. Cerca de 100% dessas famílias foram contempladas com residências do Programa Minha Casa Minha Vida, mas muitas retornaram para o local em pouco menos de um ano.
Dona Sebastiana Gonçalves Aquina, moradora da região há cerca de 20 anos, disse que ela e toda a família já se acostumaram a lidar com situação. E que só retornaram a Lago do Jacaré porque distância do local para onde foram levados trouxe problemas ao cotidiano de todos.
“Meus filhos trabalham e estudam por aqui, eu por mim ficava lá na casa nova, mas venceu a maioria e acabamos voltando. O problema é que foi na época da seca, agora a situação está pior que era antes, porque esse período de chuva está demorando a passar”, conta.
Sistema de SMS Defesa Civil
A fim de conscientizar e prevenir a população para riscos de enchentes e alagamentos em região de APP (Área de Prevenção Permanente), a Defesa Civil Nacional criou o Serviço de alerta de riscos via celular. Mais de 25 milhões de pessoas recebem uma mensagem de texto pedindo que o CEP seja cadastrado via celular, é possível cadastrar até dois CEPs. O usuário cadastrado passará a receber, direto no celular, avisos sobre alagamentos, deslizamentos e outros desastres naturais nas áreas cadastradas. Para ter acesso ao serviço, basta responder para o número 40199 as mensagens de SMS enviadas pelas operadoras de telefonia móvel. Pessoas que não receberem a mensagem também poderão se cadastrar. Basta enviar uma mensagem ao número 40199 com o CEP que o usuário deseja cadastrar. O serviço é gratuito e tem o objetivo de orientar a população. O sistema oferece às pessoas a chance de terem, diretamente em seus telefones, as condições e alertas para tomarem providências rápidas e evitar que sejam atingidas por desastres.
Enchentes fazem parte da memória dos cuiabanos (Cuiabá 300)
As enchentes e o ciclo das águas dos rios mato-grossenses se cruzam com a própria história da capital. Em 1826, a cidade ficou isolada e passou por um período de epidemias intensas que mudou toda a sua geografia. Até o século XIX, as cheias do Cuiabá eram tão fortes que as águas do córrego da Prainha costumavam formar um lago e as embarcações ancoravam onde hoje é o atual prédio do Ganha Tempo, em frente à Praça Ipiranga.
Em 1974, a enchente mais famosa do rio Cuiabá mudou a vida da população e fez desaparecer alguns bairros por completo. Relatos da época afirma que cerca de 20 mi pessoas ficaram desabrigadas e seis bairros foram afetados diretamente. Na ocasião o nível do rio Cuiabá chegou a 10.85 metros, um dos mais altos registrados até hoje.
Entre os bairros atingidos estão o Terceiro de Dentro e o Terceiro de Fora. Fotos da época mostram que a água chegou até a calçada da Igreja São Gonçalo do Porto, na Avenida 15 de Novembro.
Antes da inundação de 1974, foram registradas outras duas grandes enchentes causadas pelo rio Cuiabá, as de 1942 e 1959. Mas nenhuma causou tantos problemas à população cuiabana como a de 1974.
Em seu livro “Cuiabá de Outrora, testemunho ocular de uma época”, o historiador e escritor Lenine de Campos Póvoas conta que a enchente começou a atingir o bairro no dia 12 de março de 1974. No dia 19 os moradores já se preparavam para voltar aos seus lares quando foram surpreendidos por uma ordem de desapropriação, o que deixou naquele momento mais de 5 mil pessoas em total desespero. “Igrejas, residências, clubes e escolas também foram destruídos. Naqueles dias terríveis da inundação, só podia ser utilizado um único meio de transporte nos bairros: a canoa a remo”, relatou o historiador.
Um dos únicos grandes imóveis que resistiram à devastação da enchente foi a Casa Dom Aquino, que existe até hoje.
Para impedir o retorno dos moradores às suas casas, o governo do Estado cercou a área, mobilizando as polícias Militar e Civil e até o temido Dops (Departamento de Ordem Política e Social), criado para investigar crimes de subversão e torturar presos políticos. No dia 23 de março, 11 dias após as águas invadirem os bairros, as máquinas do Dermat iniciaram a demolição de cerca de mil casas que a enchente havia deixado em pé. Os moradores se abrigaram em igrejas, escolas, ginásios e nas casas dos outros moradores, que faziam papel de enfermeiros até que o socorro médico pudesse atender essas pessoas que tiveram que aguardar até mesmo dias para que fossem buscadas pelas ambulâncias.
Assim, bairros como o Novo Terceiro e o Grande Terceiro surgiram do remanejamento dos moradores atingidos pela enchente.
O homem que sabia ler os rios
“As chuvas não têm culpa de nada, os rios precisam subir para que as águas nutram os solos. É o ciclo da vida. O culpado pelas calamidades é o homem que quer morar onde não deve e fazer barragem onde não pode”, essa era uma das frases clássicas do Sr. Domingos Iglesias Valério, engenheiro civil, que faleceu aos 83 e por mais de três décadas coordenou a Defesa Civil do Estado e ganhou o título póstumo de “Senhor em Defesa das Águas”. Ele foi o criador da Defesa Civil, a segunda do país, em agosto de 1974, logo após a maior enchente na capital.
Ser jornalista nos anos de 1990 e 2000 em Cuiabá era visitar o Sr. Domingos Iglesias. “A chuva daqui demora meses para chegar a Porto Jofre”, dizia Iglesias que com muita paciência (às vezes não muita, mas sempre com muito amor à causa), transmitia os seus ensinamentos sobre o funcionamento dos rios de planície do estado.
Além de um pesquisador renomado no Brasil e no exterior, Domingos Iglesias foi fundador da Cruz Vermelha em MT e da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). Sua sabedoria o fez ser membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso.
Para o engenheiro, os homens precisavam compreender o ciclo das águas e não tentar modificar os rios para tentar adaptá-los as suas vontades. Além de ter o privilégio de receber aulas sobre os ciclo dos rios do Pantanal, quem teve o privilégio de entrevistar o engenheiro também presenciou a sua luta contra a construção da barragem de Manso, um dos principais afluentes do rio Cuiabá. Uma discussão que ele acabou perdendo, afinal a hidrelétrica foi construída. Que ao menos as novas gerações não percam a mensagem que ele lutava para passar: as chuvas não são o problema e sim a nossa forma de ocupação.
FONTE: Leticia Kathucia