Quando José Osmar Borges chegou à fazenda São José, em Rosário Oeste (MT), no início dos anos 80, percebeu que rochas de calcário — um mineral usado na fabricação de cimento e como corretivo de acidez para solos agrícolas — afloravam por toda parte. A gigantesca mina no subsolo permaneceu em segredo por anos, mas veio à tona quando uma disputa judicial envolvendo o atual ministro da Agricultura, Blairo Maggi, levantou a suspeita de vendas de sentenças por juízes de Mato Grosso.
Antigo aliado de Jader Barbalho, Borges ficou conhecido como um dos maiores fraudadores no chamado “escândalo da Sudam”, no fim dos anos 1990. Depois da sua morte por envenenamento em 2007, em um aparente suicídio, a fazenda São José — ou São Lucas (com 13 mil hectares, a mesma área possui ao menos duas matrículas) — foi herdada pelo filho do empresário, Alain Robson da Silva Borges. Em 2010, ele tentou articular a criação de uma fábrica de cimento no local, a BRC Cimento.
Investimentos de R$ 700 milhões foram anunciados — parte viria por meio de incentivos fiscais do governo de Mato Grosso. Alain Borges se associou a fundos de investimento de Delaware, nos Estados Unidos, para arquitetar o negócio. A ideia era fabricar o cimento que seria usado nas obras da Copa e das Olimpíadas. Uma fatia de 40% da empresa chegou a ser negociada por R$ 1,8 bilhão com as gigantes Votorantim e Holcim, mas o negócio não prosperou. Em 2014, Alain Borges encomendou de uma empresa alemã, a AEP Technology, um estudo de prospecção do calcário na fazenda São José. Os dados foram usados em uma apresentação para investidores na qual a jazida foi avaliada em R$ 25 bilhões. Os empresários espalhavam a notícia de que era possível escavar as terras por mil anos e ainda encontrar calcário ali.
O espólio de Borges incluía mais de vinte empresas, entre reais e fictícias, muitas das quais usadas para drenar os incentivos da Sudam. Entre elas, a Cotton King, uma fábrica de tecidos em Cuiabá. Assolada pela má gestão e com dívidas que somavam R$ 58 milhões em 2010, a Cotton King entrou em recuperação judicial. Os bens de Borges foram penhorados — entre eles, a fazenda.
Guerra jurídica após leilão
Em julho de 2012, o imóvel, então avaliado em R$ 39 milhões, foi a leilão na Justiça do Trabalho para cobrir dívidas do grupo. Na ocasião, foi arrematado por R$ 22,7 milhões pelo então senador Blairo Maggi, mas ele desistiu do lance e sub-rogou o direito de arrematação a Gilberto Eglair Possamai, que arcou com o valor e adquiriu a fazenda. Ex-vereador de Sorriso pelo PSDB, Possamai se elegeu em 2004 sem declarar patrimônio e com despesas de campanha que somaram R$ 11 mil.
A Procuradoria-Geral da República chegou a pedir a abertura de um inquérito no Supremo Tribunal Federal para investigar as condições em que se deram o leilão com a participação do então senador, com base na manifestação de um juiz segundo o qual Possamai poderia ser “interposta pessoa" — ou, em bom português, laranja de Blairo. Mas o inquérito 3754 foi arquivado pelo ministro Luís Roberto Barroso por falta de provas.
De olho no calcário, Alain Borges e os inquilinos para quem alugava as terras passaram a questionar na Justiça a propriedade do imóvel. Além de tentar anular o leilão na Justiça do Trabalho, a estratégia era impedir a falência da Cotton King na 1ª Vara Cível de Cuiabá e tentar transferir a massa falida da empresa para as mãos de Jorge Zanette, um empresário que já foi preso em São Paulo por estelionato. Ao arrendar a empresa, ele assumiria automaticamente seus bens, incluindo a fazenda.
O leilão chegou a ser anulado na 7ª Vara do Trabalho de Cuiabá. Na 1ª Vara Cível da cidade, o juiz Flavio Miraglia Fernandes homologou o arrendamento da Cotton King para a empresa Darling Harbour Confecções, de Zanette. Em dezembro de 2014, contudo, o empresário brigou com a turma de Alain Borges e decidiu munir Possamai com o histórico de conversas de um mês que manteve no WhatsApp com a advogada Cláudia Regina Ferreira, que supostamente intermediava vendas de sentenças no Judiciário mato-grossense. O material sugeria uma trama para manter as terras com seus antigos donos.
Com 22 páginas que compreendem o período entre outubro e novembro de 2014, os diálogos — aos quais O Globo teve acesso — constam de duas investigações que correram desde 2015 sob segredo de justiça nas corregedorias da Justiça do Trabalho e do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJ-MT).
Sócia do escritório Ferreira & Priolli Advogados Associados, Cláudia é casada com o ex-juiz Marcos Aurélio dos Reis Ferreira, filho do ex-presidente do TJ-MT, o ex-desembargador José Ferreira Leite. Em fevereiro de 2010, ambos foram aposentados compulsoriamente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no chamado “escândalo da maçonaria”, acusados de desviar R$ 1,4 milhão do TJ-MT em benefício de uma loja maçônica em Cuiabá, da qual Leite era grão-mestre.
Na conversa, a advogada faz dez referências ao pagamento de juízes. Em 6 de outubro de 2014, por exemplo, depois de encontrar-se com Zanette em uma padaria em São Paulo, ela diz: “Vc não prefere levar em espécie amanhã. Inclusive se vc tiver dólar pode ser. Não esqueça que temos que pagar o juiz primeiro (sic)”. Jorge responde: “dra o do juiz tem que ser em especie?”. “Isso”, responde a advogada.
No dia seguinte, Cláudia envia: “Ficamos acordados 2 milhões no ato da assinatura do contrato de arrendamento, sendo um milhão pro juiz e um milhão para nós. E o remanescente quando da decisão judicial de homologação do contrato de arrendamento da cotton”.
Em 8 de outubro, veio uma cobrança: “Temos que acertar imediatamente o juiz”. Jorge questiona: “E o juiz da fazenda e adm?”, supostamente em referência ao juiz Paulo Roberto Brescovici, do Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região (TRT-23). Cláudia responde: “Vão passar aqui no escritório para falarmos pessoalmente. Te posiciono assim que eles saírem daqui. Coloquei o pagamento no ato da assinatura. 2 milhões. E o remanescente na homologação do contrato de arrendamento da Cotton”.
Em 17 de outubro, a advogada faz referência ao juiz Flavio Miraglia: “Vamos finalizar isso na segunda. Pq dai já vou atrás de despachar com o Dr Flavio. Já pagamos também. E assim concluímos. E deixamos de correr risco”, escreve. Quatro dias depois, afirma: “Atrasei aqui na reunião com o Dr Flavio, mas ja estou indo”. Na sequência: “tudo ok agora é só pagar ele (sic)”.
Com o material entregue por Zanette, Possamai protocolou uma reclamação contra os juízes no CNJ. Em agosto de 2015, a ministra Nancy Andrighi mandou as corregedorias investigarem o caso. Três anos depois, a corregedoria do TJ-MT informou que não comenta casos sob sigilo. O pleno do TJ decidirá nos próximos dois meses se aposenta compulsoriamente o juiz Flavio Miraglia Fernandes, cuja conduta em outros processos de falência envolvendo empresas com patrimônio milionário é investigada.
O que dizem os juízes
Em fevereiro deste ano, o ministro corregedor-geral da Justiça do Trabalho, Renato de Lacerda Paiva, arquivou o inquérito que corria na corregedoria contra Brescovici. “Não se vislumbram provas, sequer indiciárias, das supostas irregularidades cometidas pelo magistrado”, escreveu. Em fevereiro deste ano, o Ministério Público Federal (MPF) de Mato Grosso acusou Possamai de “imputar crime a inocente”.
— Sou absolutamente inocente — disse Brescovici ao jornal O Globo.
O juiz Flavio Miraglia também refutou as acusações de Possamai.
— Vivo exclusivamente do meu salário — disse o juiz, que no último mês de fevereiro recebeu um salário bruto de R$ 43.080,74. A advogada Cláudia Ferreira não atendeu aos telefonemas da reportagem. Ao juízo, contudo, assumiu ter conversado por WhatsApp com Jorge Zanette, mas disse que os diálogos foram manipulados. Alegou que houve a troca da palavra “Luis” por “juiz” — e contratou uma perícia particular, cujo resultado, anexado ao processo, restringiu-se a detalhar o funcionamento de aplicativos como o WhatsFake, que permite adulterar conversas no aplicativo. Os corregedores não pediram perícia no aparelho. O empresário Jorge Zanette não foi localizado.
Atualmente, a fazenda está em poder de Possamai. Alain Borges ainda tenta reverter a venda judicial na Justiça.
FONTE: O Globo