Os documentos de Joana*, de 11 anos, representam um importante capítulo na vida dela e de sua família. Nos novos registros, atualizados há dois anos, constam o nome, que ela mesma escolheu, e o gênero: feminino. Joana tornou-se a primeira criança transgênero no Brasil a conseguir autorização na Justiça para que pudesse mudar seus documentos.
A permissão para que a criança alterasse seus registros foi concedida após os pais da garota - os comerciantes Jaqueline*, de 39 anos, e Carlos Alberto*, de 46 - pleitearem a mudança ao longo de três anos na Justiça. "Eu gosto bastante de pensar que eles conseguiram mover montanhas para isso", diz Joana, enquanto sorri para a mãe.
A decisão que autorizou a alteração dos documentos foi dada em 2016 pelo juiz Anderson Candiotto, da Terceira Vara da Comarca de Sorriso. O caso repercutiu em todo o país. Passados mais de dois anos, médicos que acompanham crianças transgêneros afirmaram à BBC Brasil que desconhecem outra família que tenha conseguido a mesma autorização no Brasil. Desta forma, Joana ainda pode ser a única criança brasileira que conseguiu o direito de mudar de gênero em seus registros. A informação, porém, não pode ser confirmada em razão de os processos de outros menores tramitarem em sigilo.
Joana nasceu Juliano. Mas desde os cinco anos de idade, a criança utilizava 'Joana' como nome social na escola, conquista obtida após os pais recorrerem ao Ministério Público de Mato Grosso. Os problemas surgiam quando ela precisava apresentar os documentos, no qual constava o gênero masculino e o nome de batismo. "Ela sempre ficava com muita vergonha", relembra a mãe da garota. Para evitar que a filha passasse por mais constrangimentos, Jaqueline recorreu à Justiça. "O processo foi tão demorado, que chegou um momento em que pensei que não iria conseguir", diz.
A família vive no município de Sorriso (MT). Na região, somente os mais próximos sabem que a criança é transgênero. Para muitos, trata-se de uma garota que nasceu com o mesmo gênero com o qual se identifica, pois desde os quatro anos ela sai às ruas vestida como menina. O medo de Joana sofrer ataques preconceituosos faz com que os pais evitem revelar a história dela a conhecidos.
"Nunca deixei que ela sentisse nenhum tipo de preconceito. Sempre evitamos que isso acontecesse. Há a nossa barreira na frente. Mas sei que vai chegar a hora em que ela vai ter de lidar com isso sozinha", conta Jaqueline.
Joana é a caçula da família que conta com mais um filho, de 12 anos. Nascida em uma cidade do interior do Paraná, a garota se mudou com a família para Sorriso, cidade considerada capital nacional do agronegócio, com pouco mais de um ano de vida. Ali, os pais enxergavam mais perspectivas de sucesso financeiro.
Quando tinha dois anos de idade, Joana passou a intrigar os pais. Eles perceberam que a criança costumava se portar como uma garota. "Ela me imitava e queria usar roupas e maquiagens. Eu achava que era uma fase. Na creche, as professoras me disseram que ela pegava calçados e presilhas das coleguinhas. Eu sempre pensei que ela seria um homossexual afeminado, pois não sabia o que era uma pessoa transexual", relata Jaqueline.
Os pais acreditavam que era uma postura temporária, mas a criança continuava afirmando ser uma menina. "No começo foi muito complicado. Nós não conseguíamos entender o que estava acontecendo", diz Carlos Alberto. "Procuramos várias igrejas, para tentar ajudá-la. Chegaram a dizer que ela estava com o 'coisa ruim' no corpo. Mas nós sabíamos que as coisas não eram assim".
Enquanto os pais buscavam respostas, a filha demonstrava sinais de tristeza. "Eu procurei ajuda na cidade, mas não encontrava. Na época era um assunto completamente desconhecido", relata Jaqueline. Ela revela que percebeu a dimensão das dificuldades da filha após presenciar Joana tentando cortar o próprio órgão genital. "Eu tinha chegado do trabalho e quando a vi, ela estava sentada com a tesoura na mão e com a toalha aberta. Eu fiquei bastante assustada."
Depois do episódio, a comerciante afirma ter tido a certeza de que precisava de ajuda. "No dia seguinte, fui pesquisar sobre o assunto e descobri um documentário - My Secret Self (Meu eu secreto, em tradução livre), da rede americana ABC - que falava sobre crianças transgêneros. Foi assim que percebi que minha filha poderia ser transexual, porque a situação dela era idêntica àquelas histórias. Mostrei o documentário ao meu marido e ele concordou que estávamos vivendo aquela situação."
O casal decidiu recorrer ao Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos), do Hospital das Clínicas em São Paulo. Na época, o espaço atendia somente adultos. "Mas eu insistia, dizia que tinha um filho que precisava muito de atendimento."
Os pais de Joana, então com três anos e meio, passaram a permitir que ela utilizasse vestimentas de menina. "Nós combinamos que poderia usar essas roupas em casa e na rua deveria se vestir como um garoto", diz Carlos Alberto. Nesta época, ela pedia para ser chamada de Juju. "Era um apelido mais feminino que o nome dela na época, então ela preferia", explica a mãe.
O acordo para que a filha utilizasse roupas femininas somente em casa foi bem-sucedido nos primeiros meses. Porém, os pais dizem que ela foi aos pouco evitando sair de casa. "Ela não gostava mais de ir para a escola e passou a ficar nervosa quando chegava a hora de sair. Minha filha começou a desenvolver uma espécie de dupla personalidade", conta Carlos Alberto.
Após insistir por seis meses, Jaqueline conseguiu que a filha, então com quatro anos, fosse recebida no ambulatório do Hospital das Clínicas e passasse a ser a primeira paciente criança do local.
O atendimento inicial foi feito em dezembro de 2011. "Em 20 minutos de conversa, confirmamos o que já sabíamos: a nossa filha é transexual", diz. Os pais admitem que a constatação trouxe tristeza. "Doeu bastante, porque no fundo a gente esperava que não fosse. É difícil a aceitação no começo, mas nunca deixamos de amá-la. Nosso amor só aumentou", afirma Jaqueline.
Depois da primeira consulta, a garota começou a fazer acompanhamento constante. Os pais passaram a aceitar o fato de a criança ser transgênero e solicitaram ao Ministério Público que ela pudesse utilizar 'Joana' como nome social. "Quando voltei a Sorriso, minha filha já veio vestida como uma menina. Decidimos que ela passaria a andar apenas assim, porque é como ela sempre se sentiu."
Joana faz acompanhamento no ambulatório do Hospital das Clínicas a cada três meses. No local, é atendida por psiquiatra, psicólogo e endocrinologista. Há quatro meses, as visitas dela ao Amtigos ganharam mais uma motivação: aplicar a injeção que bloqueia os hormônios masculinos da puberdade. Ela deve fazer a aplicação a cada 28 dias. Quando está no ambulatório, o procedimento é feito gratuitamente. Porém, nas vezes em que precisa aplicar em casa, a medicação é comprada pelos pais da garota.
Para as viagens trimestrais a São Paulo, a família recebe passagens de ônibus por meio do Tratamento Fora de Domicílio (TFE), concedido a usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Os gastos com hospedagens e alimentação ficam a cargo da família.
Daqui a cinco anos, a expectativa é de que a garota comece a utilizar hormônios femininos. Somente aos 21, caso queira, poderá passar pela cirurgia de redesignação sexual no Brasil. Para a criança, o maior problema nos procedimentos é a demora. "Sempre quis que tudo fosse rápido. Fiquei triste, pois falaram que demoraria muito pra eu começar a tomar os hormônios femininos", conta Joana.
Desde que atendeu Joana, no fim de 2011, o Amtigos passou a receber outras crianças e adolescentes. A demanda por menores de idade foi tamanha que atualmente a unidade atende apenas crianças de três anos a jovens menores de 18. "Somos o primeiro ambulatório que se dedica exclusivamente a eles", afirma o médico Alexandre Saadeh, coordenador do Amtigos.
O ambulatório atende, atualmente, cerca de 100 adolescentes e 50 crianças. Há ainda 140 pacientes, menores de 18 anos, em espera. Além deles, há adultos que já se tratavam no local e continuam recebendo acompanhamento.
Psiquiatra do Amtigos, Saulo Vito Ciasca destaca a importância do acompanhamento na unidade para as pessoas que possuem Transtorno de Identidade Sexual. "Nesses atendimentos, observamos melhora na saúde mental das crianças e dos adolescentes. Eles encontram um lugar onde podem existir, porque a sociedade não oferece esse local."
Desde 2011, Joana também faz acompanhamento em Sorriso. Durante seis anos, a psicóloga Cristiane Gheno atendeu a garota no município mato-grossense. A profissional destaca que o apoio que a menina recebe desde os quatro anos foi fundamental. "Acho que hoje ela tem maturidade e necessidade para ser aceita como é. Ela já sabe que não há nada de mal em ser transexual."
O acompanhamento com médicos e psicólogos foi fundamental para que os pais de Joana decidissem, em dezembro de 2012, entrar na Justiça para solicitar que o nome e o gênero da garota fossem alterados.
A mãe da criança passou por diversas situações em razão da antiga identidade da filha. "Quando a gente viajava, era um caos, porque ela era uma menina com documentos de menino. Uma vez chegaram a chamar policiais federais em um aeroporto, porque pensaram que eu a estava sequestrando", relembra.
Em entrevista à BBC Brasil, o juiz Candiotto conta que considerou o acompanhamento recebido pela garota e também a análise feita por uma psicóloga do Poder Judiciário para dar decisão favorável à mudança. "Foi a primeira vez que me deparei com uma situação que fugisse tanto do cotidiano. Casos como este exigem cautela. É preciso ser pontual, assertivo e justo. Não poderia errar, porque essa criança vinha sofrendo há muito tempo, por conta da sua situação."
A decisão do magistrado foi alvo de críticas. Na época, o senador Magno Malta (PR-ES) se reuniu com representantes das frentes católica, evangélica e da família e chegou a afirmar que faria uma representação contra a decisão do magistrado no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). "Nunca fui intimado, então não posso afirmar se chegaram a protocolar algo (contra o juiz)", explica Candiotto.
As diversas críticas após o caso ser divulgado pela imprensa magoaram Jaqueline, que não contava à filha sobre os comentários. "Milhares de opiniões me machucaram muito. Eu perdia noites de sono pensando no que as pessoas diziam. Muitos falavam que ela era muito nova. Mas desde que a minha filha passou a fazer acompanhamento, eu tive a certeza de que ela é transgênero."
Apesar dos comentários negativos, os pais de Joana relatam que a decisão judicial foi fundamental para que a garota pudesse levar uma vida melhor. "A mudança nos documentos facilitou muito a nossa vida. A gente entra em qualquer lugar, pois os registros dela estão no feminino. Hoje, acho estranho alguém dizer alguma coisa sobre ela ser menino", afirma o pai.
Cerca de dois meses após a decisão, Joana alterou a certidão de nascimento, o CPF (Cadastro de Pessoa Física) e a Carteira de Identidade (RG).