A montagem da estrutura antecede a labareda. É preciso arquitetar com cuidado as bases, em cima de um buraco cavado no chão, para, depois, enfileirar o ‘assa peixe’, nome dado à madeira. A farofa de couve preenche a barriga já vazia do pacu, que deitado sobre as chamas – e, muito importante, sobre as folhas de bananeira - demora meia hora para ter sabor de infância. A técnica é conhecida, mas mais do que na memória, vem guardada no coração do pantaneiro Manoel Dias. Ele, que hoje é cozinheiro do Hotel Sesc Porto Cercado, nasceu em Barão de Melgaço e tem orgulho de carregar suas raízes e transmiti-las a seus herdeiros.
“A trajetória da gente, a típica pantaneira, isso aqui, desde criança o pai da gente trouxe pra gente, buscou, ensinou, e a gente nunca vai esquecer”, contou o pantaneiro na última terça-feira (3) a um grupo de visitantes, na casa do Posto de Proteção Ambiental Estirão, dentro da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) do Sesc Pantanal.
Manoel tem 36 anos, e há 16 mora em Poconé e trabalha no Hotel Sesc Porto Cercado. O moquém – técnica para assar o peixe no chão – faz parte de sua memória afetiva, e foi ele quem sugeriu aos chefes que o levasse para o trabalho. “Quando eu levei isso pra minha chefe ela ficou surpreendida, porque precisamos resgatar essa cultura nossa, igual tem a preservação do Sesc Pantanal. Assim o trabalho da gente enriquece mais. Precisamos de mais companheiros pra não deixar essa cultura acabar”.
O prato, de origem ribeirinha, é só uma das receitas lembradas pelo pantaneiro e levadas para sua cozinha. Até mesmo as frutas que conhece e prova, ele faz questão de introduzir em seus pratos. O sabor vem carregado de saber popular. “Meu pai ensinou essa fruta pra mim”, fala, apontando para um pé de jenipapo. “Ele chegou em casa com um chapéu de palha, com dez frutas, colocou na mesa, tirou a pele dela tudinho e serviu pra gente. [Falei] Papai, mas isso aí vai fazer mal pra gente... e ele disse: não, meu filho, se não fez mal pra mim, não vai fazer mal pra você. E assim foi”.
E não é só dentro da cozinha que os pantaneiros lutam para manter sua cultura. Joaquim José Xavier Bueno, 50, é natural de São Pedro de Joselândia, distrito vizinho à RPPN, e há dezoito anos trabalha como guarda-parque. Ele, que já foi professor de matemática e biologia, sentiu falta de estar no meio do mato. “Uma questão de se encaixar no que você quer. Se sentir bem com o que faz”.
Atualmente, Joaquim fica doze dias direto na reserva e quatro em casa, onde mora com a filha. A viagem de ida e volta demora em média três horas, mas depende da época do ano. “Depende das águas, da seca... às vezes vai mais rápido, às vezes vai devagar...”.
A casa da RPPN, onde ele se instala, recebe pesquisadores do mundo inteiro. Ela é, inclusive, fechada para turistas. Quando está trabalhando, Joaquim divide sua rotina em fazer trilhas com os pesquisadores e dar apoio logístico para o estudo científico. “E, no mais, é monitoramento do ambiente e manutenção do posto, que é o todo daqui. O que você vê aqui a gente que faz, não tem mais ninguém que vem”.
Para ele, o mais importante de seu trabalho tem sido a conscientização até mesmo dos que moram no entorno da reserva. Em relação à cultura pantaneira, no entanto, ele acredita que uma parte está indo embora. “Alguma coisa está se perdendo, alguns hábitos que se tinha e não se faz hoje... por exemplo, o cururu, o siriri, isso está se perdendo... Aqui na comunidade ainda tem muitas pessoas, mas, no meu caso, não dá pra falar que perdi essa cultura, não perdi. Tudo o que eu sabia eu mantenho até hoje. Mas na minha família nunca ninguém mexeu com cururu e siriri, então eu não tive essa experiência”.
Claudinei Rosa da Silva vê ainda mais claramente a mudança cultural. Nascido na beira do rio, neto de duas mulheres indígenas irmãs entre si, ele morou quinze anos no Pantanal sem nem conhecer uma cidade. Começou a trabalhar aos 16 em barcos-hoteis de pesca, e aos 24 passou no concurso do Sesc, onde trabalha até hoje, com 36.
Logo que entrou, estranhou os novos alimentos. “Eu tenho 36 anos e nunca comi salada. Minha fruta é arroz sem sal e peixe”, assegura. “(...) eu conheço [aqui] antes de ser o Sesc, quando eram os primeiros hoteis que tinha. Era um hotelzinho bem pequeno, bem simplezinho, até numa época do ano, no pico da cheia, chegava a inundar os apartamentos, então era bem simples mesmo”, lembra.
Claudinei lembra bem de suas raízes e sua ancestralidade. “Minha avó ficava nas fazendas, e meu avô não é de Mato Grosso, é de Mato Grosso do Sul. Então ele conheceu minha avó, veio acompanhando os peões de fazenda, e acabou casando”. A RPPN do Sesc foi comprada em 1996. Antes disso, os 108 mil hectares eram ocupados por 25 fazendas de gado inoperantes.
“Com a dificuldade das fazendas, que era muito difícil, ele [o avô] trabalhava a troco de comida. Aí eles vieram morar na margem do rio, a família toda. Ele continuou aqui, ribeirinho, na área, e na época ele fazia peixe. O pessoal tinha mercado ambulante e descia vendendo as coisinhas, e na subida subia recebendo. Como ele não tinha outro serviço fixo, não trabalhava pra ninguém, o dono dos barquinhos davam sal pra ele salgar os peixes. Ele matava o peixe, passava sal e vendia pro dono do mercado”, lembra.
A avó de Claudinei era de etnia Bororo, e a outra, Guató. Esta foi para a cidade logo cedo, e ele ficou com a outra, que morava na beira do rio. “Nasci no Pantanal, morei 15 anos aqui sem conhecer cidade. Nasci no Espírito Santo, numa fazenda, e me criei na margem do rio. Lá era uma fazenda que tinha mais gente e tinha as parteiras”. Hoje, ele trabalha pilotando barcos do Sesc e levando turistas para conhecer as maravilhas do Pantanal.
Foi só depois que sua mãe teve uma perna amputada que ele se mudou para Poconé, onde vive atualmente, e de onde sai e volta todos os dias para trabalhar. Nestas condições, ele considera difícil manter os costumes. “Se eu pudesse, comia o peixe da minha avó todo dia”, lamenta. “Mas morando na cidade não dá. Eu chego todo dia depois das 17h, aí não vou cozinhar. Sempre procuro alguma coisa que tenha pra comer pronta”.
Há onze anos trabalhando na RPPN, Ivo de Avarenga Brandão, 43, está cerca de três horas longe de casa, para onde volta a cada doze dias. Natural de São Pedro de Joselândia, ele trabalha na casa onde ficam os pesquisadores, fazendo, na maior parte das vezes, serviços domésticos, mas também combate a incêndio. Antes disso, trabalhava com o pai, e pescava para o sustento próprio. Ele é casado, tem três filhos, e a esposa trabalha em uma escola do distrito. Em relação ao seu trabalho, acredita que tem sido importante para ajudar na preservação ambiental e na recepção dos pesquisadores. “Já veio do Brasil inteiro, e mês passado tinha um casal de americanos”, lembra.