O direito de ir e vir. Esse é o foco da disputa entre um grupo de moradores, cansados da violência, a Ordem Pública de Cuiabá, o Juizado Volante Ambiental e o Ministério Público Estadual de Mato Grosso. Desde novembro, o poder público passou a multar os proprietários das casas que construíram verdadeiras barricadas caseiras na capital.
Esta semana um projeto de lei pode mudar essa realidade. O PL foi lido nesta terça-feira, 28, e deve ser votado dia 4 de dezembro. Ele é fruto de uma comissão composta pelos vereadores Luís Cláudio (PP), Adevair Cabral (PSDB), Dilemário Alencar (PROS) e Dodo Veggi (PRP) e mais representantes da comunidade: Alfonso Leite, síndico do Condomínio Solar da Chapada; José Ribeiro da S. Nunes, morador do bairro Jardim Califórnia, e o assessor parlamentar Tadeu Cesário.
Os vereadores afirmam que podem aprovar a proposta por unanimidade. Todos os 25 vereadores da Casa assinaram o PL que deve ser apresentado ainda este ano para o prefeito Emanuel Pinheiro (PMDB).
“É uma vontade da população, entendemos que a rua é um direito de todos, mas não podemos ignorar o direito de as famílias terem maior segurança. Por isso a lei vai estabelecer critérios e princípios para que a prefeitura possa conceder a autorização para o fechamento, da forma semelhante ao que já acontece em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo”, afirmou o vereador Luís Cláudio.
O fechamento das ruas ocorre das mais diversas formas. Alguns moradores instalam grades e portões e existem casos nos quais até são construídas guaritas em bairros de com mais famílias. A violência é a principal justificativa para a prática.
Em Cuiabá já existem vários casos de fechamento de rua. Os bairros onde a prática é mais frequente são: Jardim Itália, Cidade Alta, Morada do Ouro, Jardim das Américas, Bom Clima, Terra Nova, Sesmaria São José, Avenida Beira Rio e Rua Prof. Alfredo Monteiro.
“Eu adoraria morar em uma casa como nos Estados Unidos, sem cerca, porém, não é essa a realidade que vivemos em Mato Grosso. Quando me mudei para o bairro Santa Cruz (em Cuiabá), há três anos, eram muitos assaltos. A maioria dos moradores que chegava com o carro em casa era parada por ladrões na porta de casa. Foi aí que nos unimos e decidimos instalar a grade com o portão na entrada da rua, que é sem saída”, conta Jackson Garcia, um dos moradores autuados a retirar o portão de uma rua sem saída, na região do Coxipó, em Cuiabá. “Além de o portão reduzir os assaltos, ou melhor, acabou mesmo, começamos a cuidar de um terreno que tem lá no fundo da rua e que ainda é limpo. Antes, todo mundo vinha com o caminhão e jogava entulho, de madrugada, lá. Com o portão acabou isso. Limpamos o terreno e ali está limpo, virou uma área de preservação”, diz.
Cuiabá é a 39ª cidade mais violenta do mundo, segundo levantamento realizado pela ONG Mexicana Conselho Cidadão para Segurança Pública e Justiça Penal. Essa realidade se confirma no dia a dia do cidadão mato-grossense que tem tomado medidas emergenciais e no “desespero” tenta conter o perigo vivenciado nas ruas da capital.
“Nós vivemos em um bairro simples, mas fomos obrigados a construir as guaritas por segurança. Eu vejo o promotor falar em direito de ir e vir, mas fico pensando: até onde existe o direito de ir e vir de um indivíduo que vem até aqui para fazer o mal? Para assaltar a casa de outra pessoa ou fazer coisa pior. Isso existe quando eu me torno uma ameaça para a comunidade?”, questiona José Ribeiro, do Solar da Chapada.
Jackson e José Ribeiro são representantes de moradores de bairros que também participaram de uma reunião no Conselho Regional de Corretores de Imóveis de Mato Grosso (Creci-MT), na sexta-feira passada (24/11). O auditório lotado contou com a participação de cidadãos dos mais diversos bairros de Cuiabá, representantes da Prefeitura Municipal, corretores e vereadores. Todos eram unânimes quanto à necessidade de se construir portões nas ruas para reduzir os roubos e furtos.
A violência constante também pesou no bolso dos moradores. Em alguns bairros a desvalorização por conta da insegurança de se viver em uma casa causou a perda de até 50% do valor dos imóveis. O Santa Rosa, o Jardim Cuiabá, o Shangri-lá e o Boa Esperança são alguns exemplos de regiões que sofreram uma forte desvalorização.
A ideia de que essas regiões proporcionam uma boa qualidade de vida ficou na lembrança. “Os bons bairros do passado ficaram na nostalgia do cuiabano. Espero sinceramente que o MPE e as autoridades tenham bom senso. Se permitirem a instalação desses portões de proteção em alguma ruas, como as sem saída, poderemos ao menos salvar algumas áreas residenciais na cidade”, explica o diretor-secretário do Creci-MT Claudecir Contreira.
A desvalorização e a violência começaram a ser percebidas na capital a partir do ano 2000. Foi o crescimento desordenado da cidade e, sobretudo, o avanço da violência que fizeram as pessoas começarem a migrar das casas para apartamentos e condomínios fechados. Segundo o Creci, o processo fez com que as pessoas rapidamente perdessem o interesse em se arriscar em morar em uma casa.
“A diferença de preço entre um apartamento e uma casa em um mesmo bairro de Cuiabá chega a ser assustadora. No Jardim Imperial, por exemplo, uma casa de condomínio com 42 metros quadrados, bem pequena, vale 170 mil reais, porém você não vende uma casa de três quartos, de até 100 metros quadrados, com área de lazer por esse preço ali. Ninguém quer”, afirma Contreira.
O diretor-secretário do Creci defende inclusive uma medida mais radical do que o fechamento das ruas sem saída: “Acredito que os vereadores poderiam ser até mais ousados e criar uma lei mais ampla, possibilitando a criação de condomínios maiores, mesmo nas ruas sem saída. Isso poderia salvar muitos bairros de Cuiabá”.
O apoio, contudo, não garante que o PL seja efetivado. Além do veto do prefeito, a medida também pode ser questionada na Justiça pelo MPE. “O Ministério Publico é contra tudo, sabemos que eles vão questionar judicialmente, mas contamos com o bom senso do Judiciário em prol da população”, afirma o vereador Adevair Cabral.
Aos que ainda vivem em residência na cidade, restou tentar proteger-se e fazer o que pode para garantir a sobrevivência da família e a valorização da área. Mas, apesar dos apelos dos moradores, muitos foram autuados pelo poder público por conta do fechamento das ruas.
O Circuito Mato Grosso foi conferir de perto e pôde observar a existência de pelos menos seis a oito ruas fechadas. As mais conhecidas ficam no bairro Jardim das Américas, na capital. Um exemplo é o da Rua Antigua, em que os residentes instalaram o portão eletrônico e contrataram serviço de segurança residencial. Cada morador paga cota mínima, além da taxa de imposto e se atenta para a adequação às regras da boa vizinhança no local. Fato é que a via foi praticamente restrita após invasão de assaltantes e criminosos com emprego de armas.
Um dos guardas, que pediu para não ser identificado, conversou com a reportagem e relatou que há dois meses trabalha para o pessoal e que durante este período não chegou a presenciar nenhuma ocorrência policial. Contudo, frisou que nunca viu viaturas de nenhuma polícia passar em rondas pela avenida principal do bairro.
“Nós somos três e o serviço particular de guarda ocorre em 24 horas intercaladas. No pouco tempo em que estou aqui nunca presenciei nada, nem uma ocorrência de assalto, mas já ouvir dizer que algumas casas foram assaltadas. Agora que a Polícia Militar quase não passa por aqui, isso é verdade”, relatou.
Também no Jardim das Américas existem outras quatro vias públicas trancadas, uma ao lado da outra. A reportagem conseguiu conversar com o antigo presidente de bairro, Eldon Xavier, e ele informou de duas intervenções feitas na comunidade.
Multa pública
Apesar da falta de policiamento, o poder público tem multado os moradores. Desde o início de 2017, a Ordem Pública de Cuiabá, juntamente com o Ministério Público e o Juvam, passou a fiscalizar, autuar e combater a prática, por meio da retirada de portões, demolições de muros, aplicação de multas e até emprego de maiores penalidades como o processo de perda de bens.
“A partir do momento em que fechamos as ruas, interrompeu-se a ocorrência de furtos e cessou a violência na vizinhança. Só que infelizmente o Juvam está entrando há anos com uma medida para que a gente retire esses portões e nós fomos até lá e rebatemos, porque moramos ao lado de três bairros críticos e como é que vamos ficar à mercê de bandidos?”, questionou Eldon.
Eldon confirma que por ora realmente houve a implantação da base da polícia, mas sem muito sucesso, uma vez que a ideia da tropa de cavalaria não casou bem com a proposta de atendimento à vítima.
“Existia uma base lá na primeira etapa, só que era uma base com cavalaria. Então se o morador tivesse um assalto em casa ele ligava pra base e o cara falava: pera aí, eu tenho que buscar o cavalo lá embaixo e montar pra ir atender o senhor”, critica.
O aposentado Antônio de Felice é um dos moradores mais antigos do bairro. Ele diz que apesar da instalação da guarita ainda há violência.
“Sinceramente, não mudou nada. Nós pusemos o portão e tínhamos três vigilantes que ficavam de manhã, à tarde e à noite e no fim acabamos dispensando. Mas não teve nenhuma melhoria em nada. A minha casa nunca foi assaltada, mas na da minha filha levaram uma bicicleta uma vez”, contou.
Já no Bairro Jardim Itália, o jornal pôde constatar a existência de um verdadeiro condomínio residencial em que apenas a entrada de moradores não é barrada. O conjunto habitacional criado pelos próprios moradores é formado por 50 casas divididas em duas vias, ambas sem saída.
A reportagem não obteve autorização para adentrar o local, mas foi comunicada de que o síndico do Condomínio Jardim Itália entraria em contato nos próximos dias – o que não ocorreu até o fechamento desta edição.
Ordem Pública fala sobre ações e determinações para “derrubada” dos muros
Certificada desse problema de moradia e segurança, a Secretaria de Ordem Pública de Cuiabá esclareceu em quais casos existe autorização para se agir quanto a essa prática que já está se tornando corriqueira.
De acordo com o secretário Leovaldo Salles, que também é coronel reformado da Polícia Militar, a pasta recebe uma forte demanda desses tipos de casos, no entanto, as equipes só podem ser acionadas após o recebimento de ordem judicial.
“Nós somos submissos à lei, então não podemos fechar nenhuma rua em Cuiabá. Todas as vezes que nós temos conhecimento, fazemos a fiscalização e solicitamos a demolição. Também há vezes em que recebemos, do próprio Ministério Público, o pedido para derrubada”, explica.
Questionado sobre a segurança, Salles pontua que não é de obrigação do setor de Ordem Municipal garantir esse trabalho e que cabe ao Estado assumi-lo, como prevê a lei.
“A Secretaria de Ordem Pública não faz a Segurança Pública. Ela é inerente por força de Constituição e é responsabilidade do Estado fazer a segurança. São conceitos completamente diversos. A Polícia Militar faz Segurança Pública e essa [fechamento de vias] é uma demanda do Estado”, exemplifica, no sentido de distinguir o papel de cada secretaria.
Secretaria de Segurança Pública nega denúncias sobre rondas
A Secretaria de Segurança Pública do Estado (Sesp-MT) enviou uma nota ao jornal para esclarecer que não há falta de rondas nos bairros citados e que a Polícia Militar tem trabalhado diariamente para combater e diminuir os índices de criminalidade, através das rondas ostensivas.
Também salientou por meio da nota que a Polícia Civil age dentro do que pedem as investigações e que os casos de latrocínio e homicídios se reduziram consequentemente no Estado.
Projeto de lei parar regularizar as barricadas cidadãs
O vereador Luís Cláudio (PP) integra a comissão que apresentou proposta de criação do projeto de lei (PL) a fim de sanar o problema. O PL pode regularizar o fechamento das ruas sem saída em bairros residenciais da cidade, com algumas ressalvas.
A proposta é apoiada pelos moradores e pelo Creci-MT, porém é vista com ressalvas pela administração pública municipal. Todavia, a legislação enfrenta outro obstáculo: está em desacordo com as leis ambientais e de patrimônio público de Cuiabá.
“Nós estamos construindo a quatro mãos um projeto de lei. Envolve a Câmara Municipal, a prefeitura de Cuiabá, o Ministério Público e moradores que já estiveram reunidos nesse sentido. A finalidade nossa é encontrar legalizar um mecanismo que já estão aplicando”, disse o vereador.
Cláudio explicou os critérios que estão sendo utilizados para embasamento do projeto, visto que há uma participação efetiva dos demais vereadores, da sociedade cuiabana e membros do Ministério Público Estadual (MPE-MT). Além disso, é uma questão de trafegabilidade.
“Rio de Janeiro e São Paulo fizeram isso, mas não em forma de condomínio, em forma de controle de acesso a determinadas ruas sem saída ou ruas de baixa trafegabilidade. Todavia, com uma onerosidade por se tratar de um bem público”, informa.
Para o parlamentar, caso a lei seja aprovada, só haverá benefícios, principalmente quanto ao resguardo da vida do cidadão. “Ao restringir o acesso, nós podemos estar devolvendo pra sociedade algo que eles necessitam naquele lugar, por exemplo, a reforma de uma praça, numa área de preservação permanente ou qualquer um benefício especial que estaria sendo feito em parceria. Isso está embutido no projeto”, revela.
Segundo o vereador Adevair Cabral, ao fecharem as ruas, os moradores assumiriam também a manutenção das ruas. “Tanto os cuidados com iluminação, asfalto e outras manutenções sairiam das costas do poder público, no caso a prefeitura, e passariam a ser responsabilidade dos moradores que desejarem fechar essas vias”, explica Cabral. “Isso acaba sendo algo positivo para a prefeitura”.
Promotor afirma não concordar com o fechamento de ruas
O promotor de Justiça Gerson Natalício Barbosa, da Promotoria da Defesa da Ordem Urbanística e do Patrimônio Cultural, confirmou à reportagem que foi procurado pela Câmara Municipal para opinar e orientar o projeto de lei, mas ele não vê ainda legalidade na proposta.
“Eu fui procurado por vereadores e pude perceber que eles estão bastante ponderados. O interesse deles é com relação àqueles casos de condomínios fechados há 20 e 30 anos. A lei diz que vale também para essas situações, mas muitas já estão ajuizadas em ação civil pública no Ministério Público Estadual, o que complica ainda mais a situação. No entanto, o Ministério Público está aberto para discutir e entender melhor o problema”, afirmou o promotor.
Conforme o promotor, a proposta não pode ser considerada uma prioridade do ponto de visa de que o interesse parte apenas de um grupo minoritário.
“Eu vejo a restrição legal porque as ruas são de uso comum do povo. Salvo o interesse público, ele tem de ser preservado em sua natureza jurídica e nesse caso não há interesse do povo e sim de algumas pessoas que se apossaram das ruas. De qualquer forma a discussão é interessante, mas eu vejo a limitação das ruas. Abrir um precedente dessa magnitude seria bastante temerário, então essa é nossa preocupação”, ponderou.
Gerson citou alguns casos que tramitam na Justiça e lembrou que em casos de descumprimento os moradores podem ser penalizados.
“A lei diz que vale também para essas situações, muitas dessas já estão ajuizadas em uma ação civil pública no MPE. Há um caso de um restaurante construído em cima de uma rua que houve a sentença judicial para demoli-lo. Então o que acontece é demolição e trata-se de uma ação que pode ser exercida pelo município”, informou.
Juvam não fará pronunciamento
O Juvam não quis se pronunciar sobre fechamento de rua por meio da assessoria do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJ-MT); informou que cada caso é um caso e não poderia explicar de modo geral.