Com medo de que o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), proíba o casamento gay, diversos casais estão correndo para os cartórios para formalizar suas uniões antes que o capitão reformado do Exército tome posse. Mas não há consenso entre especialistas sobre a possibilidade da proibição, já que o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional a equiparação da união estável entre pessoas do mesmo sexo às uniões heterossexuais.
Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal permitiu a união estável homoafetiva. A Constituição prevê três enquadramentos de família. A decorrente do casamento, a família formada com a união estável entre homem e mulher e a entidade familiar monoparental (quando acontece de apenas um dos cônjuges ficar com os filhos). Em 2011, os ministros concluíram que a união homoafetiva deveria ser considerada a quarta forma de família, com todos os seus efeitos jurídicos.
Prevaleceu o entendimento do relator, ministro Ayres Britto. O ministro votou no sentido de dar interpretação conforme a Constituição para o artigo 1.723 do Código Civil. O dispositivo estabelece como entidade familiar "a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".
De acordo com Ayres Britto, deve ser excluída da interpretação da regra qualquer significado que impeça o reconhecimento de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. A seu ver, a união homoafetiva não pode ser classificada como mera sociedade de fato, como se fosse um negócio mercantil.
Além de uma longa análise biológica sobre o sexo, o relator apontou que o silêncio da Constituição sobre o assunto é intencional. "Tudo que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido. A ausência de lei não é ausência de direito, até porque o direito é maior do que a lei", disse no julgamento.
Com base no entendimento do STF, o Superior Tribunal de Justiça decidiu, cinco meses depois, que um casal gay também tem o direito de se casar. Segundo o relator do recurso especial, ministro Luis Felipe Salomão, a Constituição determina a facilitação da conversão da união estável em casamento. Portanto, se o Supremo reconheceu a legalidade da união homoafetiva, o mesmo raciocínio deve ser utilizado para autorizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Então presidente do STF e do Conselho Nacional de Justiça, o ministro Joaquim Barbosa propôs a Resolução 175/2013, que determina aos cartórios de todo o país que convertam a união estável homoafetiva em casamento civil. A norma foi aprovada pela maioria dos conselheiros.
A justificativa do então presidente do CNJ foi tornar efetiva a decisão do Supremo que reconheceu a legalidade da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Joaquim qualificou como contrassenso ter de esperar que o Congresso Nacional estabeleça a norma e afirmou que os cartórios estavam descumprindo a decisão do STF. "O conselho está removendo obstáculos administrativos à efetivação de decisão tomada pelo Supremo, que é vinculante”, afirmou na época.
A Resolução 175/2013 estabelece que “é vedada às autoridades competentes” a recusa em celebrar casamento civil ou em converter união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em caso de o cartório deixar de cumprir o que dispõe a norma, caberão providências pelo devido juiz corregedor.
No mesmo ano, o senador e pastor Magno Malta (PR-ES) apresentou proposta para invalidar a Resolução 175/2013. Na justificativa do Projeto de Decreto Legislativo 106/2013, o parlamentar sustenta que o CNJ usurpou a competência do Legislativo ao “extrapolar os limites do poder de regulamentar e esclarecer a lei”.
Com o mesmo argumento, o PSC tomou a via judicial e moveu ação direta de inconstitucionalidade contra a norma (ADI 4.966). O processo, relatado pelo ministro Gilmar Mendes, ainda não foi julgado.
Há outros projetos de lei que buscam restringir a união estável e o casamento a casais de sexos diferentes. O mais famoso deles é o Estatuto da Família (PL 6.583/2013). O texto em tramitação na Câmara dos Deputados define como família apenas o núcleo formado a partir da união entre um homem e uma mulher.
Mas a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado aprovou em 2017 substitutivo do senador Roberto Requião (MDB-PR) ao projeto que permite o reconhecimento legal da união estável entre pessoas do mesmo sexo (PLS 612/2011), de autoria da senadora Marta Suplicy (MDB-SP). A matéria, terminativa na comissão, poderia seguir para a Câmara dos Deputados. Porém, Magno Malta apresentou recurso para manter o instituto do casamento, no Código Civil, apenas como ato entre um homem e uma mulher.
Jair Bolsonaro já expressou diversas vezes sua repulsa a gays e lésbicas. Em entrevista à revista Playboy em dezembro de 2011, afirmou que “seria incapaz de amar um filho homossexual. Prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí”. Um “couro” seria o tratamento que daria a um filho gay. E disse que bateria num casal gay que flagrasse se beijando na rua.
Uma de suas principais armas eleitorais foram os ataques ao inexistente “kit gay”. Ele acusava o opositor, Fernando Haddad (PT), a ter mandado produzir um livro "para ensinar nossas crianças a serem gays" quando era ministro da Educação, nas palavras de Bolsonaro. O presidente eleito diz ter ficado sabendo da existência do kit num seminário sobre homossexualidade voltado para crianças organizado na Câmara dos Deputados — nada disso jamais aconteceu; o plano do Ministério da Educação era um programa chamado Escola sem Homofobia, que não tinha qualquer livro sobre homossexualidade para crianças e era voltado aos pais e professores.
Com medo de que Bolsonaro apoie algum dos projetos que proíbe a união estável ou o casamento homoafetivos, diversos casais de pessoas do mesmo sexo estão correndo para os cartórios para formalizar suas relações antes que o militar assuma a Presidência. A medida foi recomendada por diversas instituições. Entre elas, a Comissão Especial da Diversidade Sexual e Gênero do Conselho Federal da OAB.
A presidente da comissão, Maria Berenice Dias, disse à ConJur que sugeriu que casais homossexuais acelerem a concretização de suas uniões por receio de que Bolsonaro — “reconhecidamente homofóbico”, diz — impulsione a aprovação de lei que proíba a formalização de relações que não sejam entre um homem e uma mulher.
Uma eventual norma que o fizesse acabaria sendo declarada inconstitucional pelo STF, aponta Maria Berenice. Nesse intervalo, porém, a lei se sobreporia à decisão do Supremo, afirma a advogada. Portanto, gays e lésbicas não poderiam oficializar suas uniões.
O professor de Direito Civil da Universidade de São Paulo Otavio Luiz Rodrigues Jr. concorda que a resolução do CNJ seria invalidada por outra lei. Mas ressalta que a palavra final sobre o assunto seria do Judiciário. Da mesma forma, Rodrigues destaca que, devido à decisão do STF, qualquer lei que impeça a união estável homoafetiva seria inconstitucional.
Nessa mesma linha, o professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Daniel Sarmento ressalta que nem mesmo uma emenda constitucional pode restringir a união estável e o casamento de homossexuais.
“Porque são aplicações diretas, muito relevantes, de clausulas pétreas, especialmente os princípios da igualdade e da proteção da dignidade humana", afirma. "O fato de, no caso do casamento, a decisão ser do CNJ, não é relevante. A decisão foi um desdobramento inevitável do que o STF decidiu no caso da união homoafetiva. A maior parte dos ministros disse que se equiparavam para todos os fins a união entre pessoas do mesmo sexo e a de pessoas de sexos diferentes. E a união entre pessoas do mesmo sexo gera a possibilidade de conversão em casamento. Independentemente disso, tanto a união como o casamento são vitais para o tratamento igualitário e respeitoso dos homossexuais. Não é possível esse retrocesso do ponto de vista jurídico”, explica Sarmento.
Em tese, uma lei ordinária que barrasse a união estável e o casamento homoafetivos não se sobreporia à decisão do Supremo, destaca a constitucionalista Damares Medina, sócia do Damares Medina Advocacia. Mas, desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), o Brasil “virou o país do vale-tudo”, comenta.
Assim, “a resposta pouco importa, porque a hierarquia normativa, os cânones legais já não são mais aplicáveis no Brasil. A ortodoxia jurídica deu espaço ao salve-se quem puder”. E o STF, na opinião dela, está desprestigiado – exemplo é a recusa do Senado em cumprir a decisão do ministro Marco Aurélio de afastar Renan Calheiros (MDB-AL) do comando da Casa, o que levou o Plenário a reverter a ordem.
De qualquer forma, Damares deixa claro que qualquer casamento ou união estável consumado não pode ser revertido por lei posterior que o proíba.
O jurista Ives Gandra da Silva Martins discorda. Segundo ele, o Congresso poderia, sim, por lei ordinária ou emenda constitucional, deixar claro que a Constituição só admite uniões estáveis e casamentos entre homens e mulheres.
“Durante a Constituinte, os constituintes discutiram se deveriam admitir o casamento gay e optaram por não admiti-lo. Por isso, o artigo 226, parágrafos 1º a 5º, só falam em união estável e casamento entre homem e mulher. Inclusive o casamento religioso, com validade de casamento civil só é admitido entre homem e mulher. O STF, ao constituir a união estável entre pares do mesmo sexo, e o CNJ, ao admitir o casamento, transformaram-se em poder constituinte que não são (artigo 103, parágrafo 2º, proíbe que mesmo nas ações de inconstitucionalidade por omissão do Congresso que o Supremo legisle)”, analisa Gandra Martins, prevendo que uma medida do tipo geraria uma grande discussão no STF e no CNJ.
Como o Supremo baseou sua autorização de uniões homoafetivas na interpretação de princípios constitucionais, é possível que a corte considere que a decisão decorre necessariamente da Carta Magna e não pode ser alterada pelo Legislativa, pondera Ana Paula de Barcellos, professora de Direito Constitucional da Uerj.
Contudo, ela declara ter “dificuldade teórica” de considerar que o assunto não poderia ser objeto de deliberação do Congresso. Especialmente porque “o debate em torno do casamento homoafetivo envolve muito mais a disputa relativa ao reconhecimento social de uma determinada situação do que a solução de problemas específicos, que a rigor já vinham sendo resolvidos por outros mecanismos (como partilha de bens, direito a benefícios previdenciários, entre outros)”.
A ConJur procurou diversos ministros do Supremo Tribunal Federal, mas nenhum deles quis comentar a possibilidade de uma lei ou emenda constitucional proibir as uniões de homossexuais. No entanto, integrantes da corte vêm sinalizando que uma norma do tipo seria anulada.
Cármen Lúcia afirmou que a Carta Magna assegura a igualdade de todos e que o STF irá assegurar esse direito.
“Como juíza e principalmente como professora de Direito Constitucional, todas as pesquisas e tudo que eu vivo e compreendo é de que há sim preconceito. Há sim direitos que foram conquistados e que a gente precisa fazer valer permanentemente, porque esta é a defesa permanente da democracia e da Constituição. (...) Eu não sei qual é a política que virá ou as políticas que virão. Sei que o STF, como guardião da Constituição, sempre é responsável por assegurar que aqueles direitos que são tidos como fundamentais, como o princípio da igualdade nos termos da Constituição e da lei, que terá no Supremo seu ponto de garantia”.
Por seu turno, Luís Roberto Barroso ressaltou que “é preciso separar o que é uma agenda legítima de quem ganhou de uma eventual necessidade de proteção da democracia e dos direitos fundamentais”. Se isso acontecer, disse, “o Supremo cumprirá o seu papel”. O magistrado também deixou claro que o Congresso não pode limitar a aplicação de direitos fundamentais.
“As características dos direitos fundamentais são: eles independem da vontade do legislador ou da aprovação das maiorias e, a meu ver, nem emenda constitucional pode impedir o desfrute de um direito fundamental, o que no caso brasileiro seria a violação de cláusula pétrea. Os direitos fundamentais têm aplicabilidade direta e imediata e quando eles entram em colisão é o Poder Judiciário que tem que dirimir a questão”.
Já Alexandre de Moraes lembrou que a função contramajoritária do Judiciário e, especialmente do Supremo, visa evitar “ditaduras da maioria”.
“Essa função é importantíssima para garantir estabilidade. Não há estabilidade se a maioria sempre oprime a minoria”. (...) Quem deve editar as leis, quem deve apontar o rumo a ser seguido, seja por políticas públicas, pela legislação, é a maioria. Agora, ela foi eleita pelas regras do jogo, então tem que cumprir as regras do jogo. A maioria não pode extrapolar o que a Constituição determina, não pode exceder, abusar, discriminar minorias. Aí entra o papel de moderação do Poder Judiciário e, diretamente, do STF”.
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FONTE: Sérgio Rodas - Conjur